A agência humana e o ordenamento jurídico

11/10/2010 11:33

A agência humana é um tema social debatido com maior ênfase a partir da segunda metade do século XX, quando a transformação paradigmática das ciências sociais e jurídicas acentuou-se devido à necessidade premente de estudar a mútua influência entre indivíduo e sociedade. Vencendo as dicotomias analíticas reconhecidas pelas teorias predominantes até a época descrita – pessoa x grupo, Estado x cidadão, direito positivo x direito “achado na rua” – o agenciamento propõe uma nova leitura da sociedade industrial e dos modelos posteriores, como a chamada “sociedade da informação”. Alcunhada de pós-modernidade, esta fase novecentista se delineou pela fragmentação das relações sociais e pela crise da autoridade pública, recrudescendo o pluralismo jurídico, por conseqüência, visto que as instituições então existentes demonstraram sua inaptidão para sanar demandas coletivas e particulares essenciais como a inclusão das minorias. O artigo retrata essa realidade alicerçado nas teorias sociológicas de Norbert Elias e de Anthony Giddens, bem como fundamenta-se, axiologicamente, nas idéias de Kant sobre a autonomia e a liberdade racional do ser humano. 

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A teoria da agência humana, embora anterior à segunda metade do citado século, ganha relevo a partir da fragmentação pós-moderna, notadamente no período recente neoliberal, em que já não são mais adequadas as explicações organicistas, cuja desconsideração da ação humana deixa sem resposta questões suscitadas hoje nas sociedades industriais, mormente as mais avançadas tecnologicamente. Nestas, as relações entre os indivíduos foram duramente modificadas pela inclusão, nos meios de comunicação verbi gratia, de recursos como a internet e as transmissões da mídia via satélite. A interação com máquinas já é também uma realidade. E nesse novo contexto social, a análise da dinâmica social pelo funcionalismo, embora não totalmente incorreta, é todavia insuficiente. A própria nomenclatura já o indica: homeo=igual; stasis=estático. Nesse sentido, manter o equilíbrio do organismo seria sustentar o status quo ante, o que admitiria a premissa, então, de uma sociedade em que os seus indivíduos não colaborariam significativamente com suas decisões para as alterações historicamente percebidas na vida social. A teoria da agência humana pretende promover o estudo da dinâmica social a partir das relações concretas que surgem entre os indivíduos que vivem em um mesmo espaço coletivo, sem contudo transformar-se em uma outra via do individualismo metodológico. Apesar de focar a importância das escolhas dos agentes, considera que há, sim, uma ordem supraindividual que estabelece regras que limitam a ação destes. A vida social se configura, ou estrutura, a partir das constantes interações entre o coletivo e o individual, equanimemente.

 

1 A teoria do jogo de Norbert Elias  

 

Na teoria de Norbert Elias, o autor perquire sobre como o ser humano desenvolve sua socialização, sendo esta um conjunto de relações complexas de interação, e também como se movimenta no meio social. Disto resulta a idéia de que, mesmo havendo uma ordem preexistente ao indivíduo, concomitante a esta há uma matriz de escolhas que podem ser feitas pelo ser humano no seu trânsito social, reforçando o dinamismo desse modelo conceitual. Elias refere-se à sociogênese como o instante histórico em que nasce um hábito social, tanto resultado da ordem existente, supraindividual, quanto das escolhas feitas pelos indivíduos, alterando o curso dos fatos em inúmeros momentos. Desde costumes simples como o uso de talheres até a transmissão da linguagem de uma geração para outra, este sociólogo afirma que há duas considerações a serem feitas no estudo da vida social. Primeiramente, todo habitus é uma herança, uma rotina praticada pelos ancestrais que nos introduz aos parâmetros de convivência do grupo em que nascemos. Estão pré-constituídos e é por seu conhecimento que interagimos com os demais membros da nossa coletividade. Assim são a religiosidade, os papéis do homem e da mulher, a aplicação de normas jurídicas. 

Em segundo lugar, sem contudo estar em um plano inferior, um habitus, ainda que resultado de um processo de socialização preestabelecido, não enrijece a vida social. A matriz de escolhas permite ao indivíduo interferir no processo histórico de uma coletividade, alterando por vezes o que o autor denomina de configuração das relações sociais. Assim como o habitus é construído socialmente durante a história de uma sociedade, além de ser objeto de uma gênese social, ele também é fruto de uma gênese psíquica, ou seja, individual. Elias amplia, em relação aos funcionalistas e aos estruturalistas, a capacidade de ação do indivíduo sobre a ordem existente, seja ela qual for, especialmente consideradas as situações inesperadas – fora das rotinas – que surgem e são resolvidas por atitudes muitas vezes inovadoras. Não obstante isso, também se afasta do individualismo metodológico por estar atento à relevância da configuração social para que tais rotinas sejam aprendidas pelo ser humano em seu convívio intersubjetivo, assim mantendo a estabilidade da ordem social e transmitindo aos novos integrantes os conhecimentos já adquiridos por aquele grupo. 

A configuração social e as estratégias individuais dentro do meio social são, segundo Elias, processos concomitantes. Dentro da estrutura, o agente produz individualidade, pois realiza a sua ação tendo por referência alguma coisa a ele disponível – background. O conceito de indivíduo, em si mesmo, decorre de uma sociogênese. Nasceu há pouco mais de duzentos ou trezentos anos, a partir da racionalidade moderna. Foi dentro de um contexto social específico que se tornou possível discutir a existência e as características do conceito de individualidade, reservando-lhe direitos que a protegessem, inclusive, tal como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789). Havia uma configuração propícia ao desenvolvimento desse conceito, ao mesmo tempo em que sem a escolha por um modelo grego de democracia, por exemplo, como feito pelos revolucionários setecentistas, talvez outro fosse o conteúdo do que hoje se entende por indivíduo-cidadão. Isso acontece porque o indivíduo, embora represente um mundo particular, também compõem uma rede de interdependência com outros indivíduos – configuração social – que, por sua vez, possui demandas específicas, diferentes das individuais isoladamente percebidas. Razão pela qual, para Elias, o real objeto da Sociologia é o estudo das razões pelas quais os seres humanos se ligam entre si e erigem tais redes de relações, que configuram diferentes momentos de uma sociedade e a diferenciam de outras, formadas por outrem. Essa configuração decorre de ações particulares mas, simultaneamente, também constitui uma ordem autônoma limitadora desse mesmo agir, ante as necessidades de sobrevivência específicas da coletividade. 

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2 Agência e estruturação conforme a teoria de Anthony Giddens  

 

Giddens é, sem dúvida, o autor contemporâneo que maior espaço de ação reconhece ao indivíduo dentro da coletividade. Em razão disso, opta por não se ater à rigidez do termo estrutura e, ao invés dele, adota o conceito de estruturação, conferindo a noção de dinâmica à sua teoria, posto que não se pode falar em agência, como dito ab initio, de uma forma homeostática, a exemplo do que fizeram os funcionalistas e neofuncionalistas. O emprego do termo estruturação, tal como faz Giddens, assemelha-se à teoria do jogo de Elias, visto que representa as condições segundo as quais os agentes escolhem agir em um contexto no sentido de dar continuidade ao status quo, ou, de outra forma, para transformá-lo. Assim como no jogo, o processo de estruturação possui um aspecto externo, autônomo em relação aos atores sociais – práticas, regras e recursos sociais que são aprendidos pelo ser humano ao nascer ou de outra maneira compor um grupo – e, ainda, um de natureza interna, no tocante à ação dos indivíduos. Assim, no conceito de agência de Giddens, o ator social tanto reproduz rotinas preexistentes, quanto também produz algo de si para ser inserido no sistema, de modo geral, com a capacidade de sobre ele interferir, ainda que nem sempre com o grau de poder desejado.

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A estrutura se forma a partir das regras sociais que conformam o indivíduo às rotinas aprendidas em seu grupo, assim como são pertinentes aos recursos socialmente disponíveis para que elas sejam cumpridas.... Os conceitos de regra e de recurso são muito relevantes na teoria giddensiana, visto que representam, respectivamente, um meio de coerção para continuidade das práticas sociais (institucionalizadas) e um facilitador da ação dos atores sociais em cada cenário. Assim, a agência, simultaneamente, está sujeita às normas válidas do sistema para nele interagir e ser por ele reconhecida, como também depende dos recursos disponíveis para serem usados no agenciamento para efetuar um nível mais acentuado de transformação. A partir desse repertório conceitual, Giddens elenca algumas características da sociedade com reconhecimento da agência humana: a) não há locais fixos, o que enrijeceria a estrutura (daí utilizar a nomenclatura estruturação); b) os elementos normativos servem para assegurar  pretensões de legitimidade sobre um local (posição) social, as quais "podem, é claro, ser de muitos tipos e ser contestadas em maior ou menor grau" (Op. cit., p. 135); c) a sociedade não se confunde com os limites territoriais de um Estado, por exemplo, mas atine à rede de relações formadas pelos indivíduos, que podem ser variadas, como afirmou também Elias (Ex.: curdos, no Iraque; indígenas, no Brasil; o povo do Nepal, em relação à China). 

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Agir, no entanto, não é um ato expectante do indivíduo diante dos sistemas sociais existentes, mormente o jurídico, passivamente aguardando uma orientação sobre como deve ser o seu comportamento social. O agenciamento decorre do uso da razão. Os jogadores elaboram estratégias para alterar a configuração social existente e, mesmo quando a ela submetidos, fazem escolhas racionais, ainda que radicais por vezes. Por exemplo, uma mulher que lute pela liberdade feminina em um país repressor, dentro da estrutura poderá não encontrar apoio à sua causa; tal fato, porém, pode não impedi-la de agir, articulando com outras mulheres um movimento de resistência cujos fundamentos são a dignidade da pessoa humana e a liberdade. Desse modo, o ser humano é dotado da capacidade de agir racionalmente e de orientar suas escolhas conforme os seus interesses, conquanto as situações lhe sejam adversas e as escolhas impliquem em sua condenação à morte ou expulsão da comunidade, como em alguns países ocorre com as mulheres que contestam leis discriminatórias. 

A natureza da autonomia atribuída ao agente é transcendental, fruto da liberdade de pensamento do agente humano vivendo em sociedade. Pois, embora a agência contemple as variações individuais na habilidade para elaborar estratégias de jogo no âmbito da vida social, há nela um aspecto kantiano quanto à formação da racionalidade dos agentes em um dado contexto social e histórico: “No conceito puro do entendimento a realidade é aquilo que corresponde a uma sensação em geral... indica em si mesmo um ser (no tempo)” (KANT, 1999. p. 147). E este agir racional, pautado pela autonomia, interfere nas relações entre Estado e povo, lei e destinatário da norma, visto que: a) por um lado, a razão transcendental institui conceitos que estão além da singularidade, preservando a natureza do coletivo, subssume o agente às condições estruturais, consoante a racionalidade de sua época e sociedade; b) por outro lado, seria correto afirmar que a liberdade de pensar do agente promove, à medida em que age conforme suas escolhas, a transformação da estrutura social, evitando sua excessiva rigidez, posto que ele (re)elabora a razão de seu tempo, reconfigurando os parâmetros recebidos em decorrência de sua “vocação ao pensamento livre, (pela qual) este atua em retorno progressivamente sobre o modo de sentir do povo (com o que este se torna capaz cada vez mais de agir de acordo com a liberdade)” (KANT, 2005. p. 71). Para Immanuel Kant, essa autonomia é primordial para que se respeite a dignidade do ser humano. (...) 

A agência humana, portanto, é a capacidade de promover interações sociais munidas do poder dos indivíduos de alterarem sua realidade, reconfigurando as características do modelo de sociedade em que vivem. Exemplos históricos podem ser enumerados, como a independência norte-americana (1776), o sindicalismo da virada do século XX na Europa, o processo de redemocratização latino-americano nas décadas de 1970 e 1980, o Banco Popular para microcrédito criado na Índia há cerca de trinta anos. Em cada um desses contextos existiram agentes envolvidos na tarefa de alterar a estruturação da sociedade então vigente, utilizando-se, para isso, das “regras do jogo”, como também de suas próprias estratégias, ainda que, mormente, estas sejam subordinadas à um conjunto de condições socialmente definidas e impostas. Interessa ao direito as formas de agência, em particular, que elaboram tais “estratégias” aquém do ordenamento jurídico e, concomitantemente, com o fito de se tornarem legítimas e legais, como proposto pela modalidade de sistema normativo extra-estatal não negativa. Elas constituem um objeto de estudos importante, porque tratam de uma disputa entre “poder local” e poder estatal sobre qual a melhor forma de suprir as necessidades sociais.

Não há nesta modalidade nenhuma intenção de se extirpar as instituições públicas, mas de transformá-las para que desempenhem melhor a função social do direito (CAVALIERI, 2004. p. 15 e 16). Sem este compromisso, o ordenamento jurídico frustra-se na concretização dos princípios defendidos pela norma positiva – elaborada pelo legislador como representante do povo –, pois esta, conquanto válida, não terá eficácia social, aspecto relevante da teoria tridimensional do direito exposta por Miguel Reale (Op .cit., p. 79-93; REALE, 1991. p. 65). Nesse sentido, a agência humana direcionada para o campo do direito significa uma reação dos indivíduos em sociedade quanto ao conteúdo das normas jurídicas ou à forma de acessá-las, muitas vezes também problemática.


(Excertos do artigo de mesmo nome publicado na Revista da Faculdade de Direito Padre Arnaldo Janssen, v.1, ano de 2008)

 


Recomenda-se a leitura das obras: SCHUMAHER, Schuma & BRAZIL, Érico Vital. Mulheres Negras do Brasil. São Paulo: Redeh (Rede de Desenvolvimento Humano)/SENAC, 2007.; ALI, Ayaan Hirsi. Infiel: a História de uma Mulher que Desafiou o Islã. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.; HOSSEINI, Khaled. Cidade do Sol.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. Pode-se ver também os filmes Yentl (1983), dirigido por Barbra Streisand, baseado em livro de Isaac Bashevis Singer; Norma Rae (1979), dirigido por Martin Ritt, com Sally Fields; e Olga (2004), dirigido por Jayme Monjardim.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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