A cidadania contemporânea

22/07/2011 11:34

A marca distintiva da cidadania contemporânea é o seu caráter deliberativo, mesmo que às vezes aparente ser promessa ainda não concretizada, pois há confiança na Constituição. Por mais que muitos ajustes precisem ser continuamente feitos, as hodiernas lutas dos diversos grupos sociais e as disputas por interesses objetivam exatamente efetivar essa expectativa de democracia participativa, segundo a qual as demandas aventadas no campo extraestatal possam ser absorvidas pelo Estado e por seu ordenamento jurídico – natureza de resiliência. Contemporaneamente, ser cidadão é atuar, ser agente seja em ações individuais visando assegurar prerrogativas particulares ou articulando-se com outros indivíduos para garantir direitos partilhados. Se a cidadania atual é uma expectativa de concretização tanto dos direitos previstos quanto da participação no processo que os define. Logo, quanto menor o grau de efetivação das normas que poderiam assegurar essa situação favorável ao cidadão, mais periférica será a cidadania por ele usufruída. Define-se como cidadania periférica aquela que se reconhece aos grupos sociais e indivíduos que não tenham meios para usufruir plenamente dos direitos assegurados pelo Estado, ou que, mesmo podendo exercê-los, neles não encontram respostas para suas necessidades reais.

 

O modelo vigente não foi planejado pensando em sua inclusão. Exemplo da primeira hipótese é o caso dos concursos públicos que respeitam a cota para portadores de necessidades especiais em seus editais. Porém, no momento das convocações, apenas chamam para tomar posse dos cargos públicos objeto do certame os não cotistas. Exemplo do segundo é o caso dos casais homossexuais que, pouco a pouco, obtêm do Estado (e do ordenamento jurídico a este vinculado) a legalização de sua relação de afeto, posto que, como se verá a seguir, em sentido material já possuem legitimidade. Mas a cidadania contemporânea urge que se tenham instrumentos adequados para que possa ser vivenciada de fato. Estes instrumentos, atualmente, têm sido oferecidos pela democracia deliberativa, ainda que imperfeitamente, a qual propõe a complementação do modelo de representação política. Não pretende substituí-lo, pois ainda não se tem o suporte necessário para viabilizar o debate acerca das questões sociais sem a eleição ou indicação de delegados do povo. Contudo, acrescenta a este modelo novos recursos para a aproximação entre Estado e sociedade civil. Leia-se abaixo o que explana Roberto Gargarella:

        

- O que é a democracia deliberativa e em que se diferencia de outras concepções de democracia?

- A ideia de democracia deliberativa considera que as únicas decisões públicas justificadas são as que resultam de um processo de discussão inclusivo, sem grupos marginalizados. Algo que não ocorre hoje na Argentina, onde existem vozes e grupos sistematicamente ausentes da tomada de decisões. O Congresso se especializa em tomar decisões a partir da imposição de una maioria que levanta a mão. E apesar disso ser uma condição necessária para a construção de una decisão democrática, não é uma condição suficiente para consegui-la. Tampouco é suficiente para que a decisão seja constitucionalmente válida.” (GARGARELLA, Roberto. La Nación. Caderno de Cultura. 14 de outubro de 2009. Entrevista. Disponível em:  <https://www.lanacion.com.ar/1186007-como-ciudadanos-perdimos-el-control-sobre-la-politica>. Acesso em 19 de julho de 2010.)

 

No Brasil, a democracia deliberativa ainda está sendo construída. Para efetivá-la é necessário ainda, garantir que os oito pressupostos da poliarquia, segundo Robert Dahl, estejam presentes de modo concreto em nosso dia a dia, pois a representação política, por si só, é insuficiente para que todas as demandas dos indivíduos sejam ouvidas. E, em muitos casos, a dificuldade dos eleitores em se conectarem a um representante específico prejudica a cobrança das promessas feitas durante a campanha. Particularmente no caso dos cargos proporcionais, muitos mandatários políticos são eleitos por voto de legenda e não por atingirem pelo próprio montante de votos o mínimo exigido pelo quociente eleitoral.

 

São eles:

 

1. Liberdade de formar e aderir a organizações;

2. Liberdade de expressão;

3. Direito de voto;

4. Elegibilidade para cargos públicos;

5. Direito de líderes políticos disputarem apoio;

6. Fontes alternativas de informação;

7. Eleições livres e idôneas;

8. Instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de preferência (DAHL, 2005, p. 26; grifo nosso).

 

A poliarquia é, destarte, o modelo de democracia deliberativa possível em países com grandes populações, em que são oferecidas aos cidadãos amplas oportunidades de participarem tanto da tomada de decisões, seja por meio da eleição de representantes, bem como por outras formas de manifestação de preferências. Isso é importante porque os cidadãos devem usufruir de mecanismos concretos e efetivos que garantam sua participação dentro da comunidade à qual pertençam (GARGARELLA, 2004, p. 77). No caso brasileiro, as preferências dos indivíduos ou grupos são expressas, usualmente, através de dois caminhos. O primeiro é a via executiva. Os indivíduos e os grupos sociais são convidados a promoverem ações junto ao Poder Executivo, como no Orçamento Participativo (OP) e nos conselhos gestores, com o intuito de opinarem na tomada de decisões sobre políticas públicas. As regras sobre como essa participação deverá/poderá ser exercida estão dispostas nas legislações federais, estaduais, distritais e municipais, encontrando amparo na Constituição (e.g., o conselho gestor da área de saúde pública, previsto nos arts. 77, §3º e 79, parágrafo único, da CR/1988).

 

Sobre essa última modalidade de ação coletiva sujeita às normas jurídicas se faz algumas considerações. Consoante esclarece Silva e Oliveira, a democracia deliberativa é um corpo de ideias que compõe o paradigma atual da relação entre Estado e sociedade civil. Este vínculo se forma através da construção de espaços participativos nos quais a gestão conjunta das questões sociais é assumida por ambos em prol do que comumente se designa como o bem comum, conceito mais amplo do que a noção de interesse público, inclusive, já que não se restringe à atuação estatal apenas.

 

“Os conselhos representam meios públicos de deliberação criados para promover a participação social... Os conselhos podem contribuir para a democratização da gestão pública, a ampliação quantitativa e qualitativa da participação, a condução coletiva de políticas sociais, a responsabilização de governantes (accountability), o controle social pró-ativo e para o intercâmbio de informações entre população e poder local. Contudo, podem ser transformados em órgãos cartoriais (que apenas referendam as decisões do executivo), em mecanismos de legitimação do discurso governamental ou em estruturas formais (sem reuniões frequentes, programas de trabalho, representatividade social, vigor argumentativo, rotinas de capacitação e acesso aos poderes instituídos).

 

(...)

 

Ao lado do orçamento participativo, os conselhos gestores estão sendo apontados como atores-chave da democracia deliberativa no Brasil (AVRITZER, 2000). Entretanto, seu índice de institucionalização é expressivamente maior. Dados de Ribeiro e Grazia (2003), referentes à gestão 1997-2000, atestam que 103 municípios conduziram orçamentos participativos no período. Paralelamente, a Pesquisa de Informações Básicas Municipais (IBGE, 2001) registra a presença de conselhos de saúde e assistência social em, respectivamente, 97,59% e 93,13% das cidades brasileiras. Órgãos voltados à infância e à juventude (77,45%) e à educação (73,24%) também possuem inserções significativa.” (SILVA E OLIVEIRA, 2010, p. 422-423)

 

Na verdade, o interesse público se refere à tutela estatal, mas o bem comum, além de englobar esta noção já conhecida, reconhece, ainda, a ação coletiva dos grupos sociais em prol do que seja o bem comum. Há todo um processo de negociação de interesses e de poder entre tais grupos, assim como entre estes e o poder público. E, de acordo com Breus, como explicado na Introdução, nota n. 6, essa elaboração de políticas públicas é, nos dias atuais, totalmente pertinente ao campo do direito, e deve ser dentro dele contemplada, embora não exclusivamente pelos órgãos oficiais. Disso decorre a própria noção de accountability, principalmente considerando o aspecto vertical desta – a relação Estado e cidadãos. Sobre o tema se recomenda a leitura do artigo de José Antônio Gomes de Pinho e Ana Rita Silva Sacramento, “Accountability: já podemos traduzi-la para o português?”, em que este instituto é muito bem explicado.

 

Em seu sentido vertical, considera-se objeto da análise de responsabilização do Estado (accountability) sua abertura ou fechamento à ação individual ou coletivamente articulada pelos cidadãos para obter do poder público a satisfação de suas expectativas. Consiste em um controle externo do Estado, representa a cobrança de resultados esperados por parte dos eleitores frente aos ocupantes de cargos estatais, eletivos ou não (PINHO, 2009, p. 1350). Em um modelo de democracia meramente representativa, como já dito, a accountability vertical, além de pouco utilizada, em geral não fornece os instrumentos necessários para um real controle por parte dos cidadãos, tampouco mecanismos de interferência destes na tomada de decisões e na elaboração das regras sobre como participar e sobre qual o direito que será construído e imposto a todos. Em seu sentido horizontal consiste no controle interno através das “agências estatais possuidoras de direito, poder legal, disposição e capacidade para realizar ações, que vão desde a supervisão de rotina e sanções legais ou até o impeachment contra ações ou omissões de outros agentes ou agências do Estado que possam ser qualificadas como delituosas” (PINHO, 2009, p. 1350).  Em razão desses aspectos é que se afirma a bidimensionalidade do instituto. Sem tal caráter bidimensional não se poderia exercer efetivo controle sobre as ações do Estado, o que em um modelo de democracia que pretende se efetivar como uma poliarquia é inaceitável (PINHO, 2009, p. 1351).

 

Por fim, o segundo caminho é a via legislativa. Nele, o nível de organização favorece a propositura de projetos de lei por meio da iniciativa popular e a participação nas audiências públicas. Em relação à elaboração das normas, como no Brasil há, ainda, uma conexão pragmática entre os representantes e os representados, a ação coletiva organizada é fator determinante para uma comunidade ou outro segmento social obter êxito nas disputas por espaço no Poder Legislativo com o intuito de aprovar normas de seu interesse. Segundo Eduardo Novoa Monreal, o processo legislativo nunca está isento da ação dos chamados “grupos de pressão”, que elegem representantes políticos para defender seus interesses particulares, em detrimento do bem comum, o que prejudica a concreção efetiva do direito (MONREAL, 1999, p. 60-61).

 

Mas, ressalva-se que, para a participação popular acontecer democraticamente, a ação social (individual ou coletiva) não pode ser “induzida” pela manipulação da opinião pública. É preciso aferir se existem mecanismos de usurpação do espaço de ação coletiva ou que a viciem, além de oferecer ao cidadão instrumentos jurídicos efetivos de defesa do direito de participar. A possibilidade de coerção da autoridade pública que se fechar à deliberação ampla das questões sociais precisa ser uma garantia oferecida aos indivíduos em situações privadas, e também à sociedade civil de modo geral. Este é um dos ganhos com a implementação das liberdades civis com a ascensão do Estado de Direito que jamais se pode olvidar nem tampouco dela retirar a tutela estatal. Como dito por Robert Dahl, a democracia efetiva, ou poliarquia, somente existe quando são assegurados, dentre outros pressupostos indicados pelo autor, a liberdade de informação e de participação, além do direito à contestação pública, especialmente das minorias. Parto do pressuposto também de que, para um governo continuar sendo responsivo durante certo tempo, às preferências de seus cidadãos, considerados politicamente iguais, todos os cidadãos plenos devem ter oportunidades plenas:

 

1. De formular suas preferências.

2. De expressar suas preferências a seus concidadãos e ao governo através da ação individual e da coletiva.

3. De ter suas preferências igualmente consideradas na conduta do governo, ou seja, consideradas sem discriminação decorrente do conteúdo ou da fonte da preferência. (DAHL, 2005, p. 25)

 

No momento em que uma democracia representativa lobbista se superponha à democracia deliberativa, não obstante os defeitos que esta também possua, não serão os objetivos da sociedade – ou de parcela desta, conforme o caso em tela – que estarão sendo buscados, mas, sim, os interesses dos detentores desse poder de manipular.

 

Referências

 

DAHL, Robert Alan. Poliarquia: participação e oposição. Tradução de Celso Mauro Paciornik. São Paulo: EDUSP, 2005.

 

GARGARELLA, Roberto; ALBANESE, Susana; DALLA VIA, Alberto; HERNÁNDEZ, Antonio; SABSAY, Daniel (Orgs.). Derecho Constitucional. Buenos Aires: Editorial Universidad, 2004.

 

MONREAL, Eduardo Novoa. El derecho como obstáculo al cambio social. 13ed. México: Siglo Veintiuno Editores, 1999.

 

PINHO, José Antônio Gomes; SACRAMENTO, Ana Rita Silva. Accountability: já podemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, n. 43, v. 6, p. 1343-1368, nov./dez. de 2009.

 

SILVA E OLIVEIRA, Virgílio Cézar da; PEREIRA, José Roberto; OLIVEIRA, Vânia A. R. de. Os conselhos gestores municipais como instrumentos da democracia deliberativa no Brasil. Cadernos EBAPE.BR,  Escola de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro,  v. 8,  n. 3, setembro de  2010. P. 422-437.

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