A hermenêutica da facticidade em Heidegger

28/12/2010 14:36

O Direito não se reduz à sua elaboração abstrata e, tampouco, restringe-se à decisão judicial que o aplica ao caso concreto. O seu aplicador, para tomar qualquer decisão, deve, antes, vincular-se à norma fundamental, como pretendido por Kelsen, ou à tradição do ordenamento jurídico, a exemplo da teoria de Dworkin. É-lhe necessário harmonizar em seu trabalho hermenêutico – às vezes, realmente hercúleo – tanto o sentido mais universal dos fundamentos de validade do ordenamento jurídico, quanto seus elementos de facticidade, os quais asseguram que os princípios primordiais que o direito deseja preservar sejam defendidos e efetivados junto à realidade do caso concreto. Ou seja, o direito precisa solucionar questões reais, todavia sem desligar-se de seu parâmetro axiológico – aqui se considerando que o termo “parâmetro” não determina uma única forma de pensar, mas um conjunto de fundamentos partilhados por uma comunidade jurídica, como proposto pela teoria da integridade. Ora, a norma é um dever ser, uma formulação abstrata, uma descrição viável da realidade, conquanto esta tenha mais dimensões do que aquelas contempladas na descrição teórica. Este tem sido o dilema dos profissionais do Direito: alcançar a justa aplicação da lei diante do caso concreto, comumente mais complexo do que aquilo que devia ter sido. O equilíbrio para esta relação, segundo Heidegger, poderia ser obtido por meio dos conceitos de avvicinamento (aproximação) e lontananza (distância), recurso pelo qual se poderia observar como o ser está , no mundo (HEIDEGGER, §23). Em Aristóteles, Heidegger recorda, o conceito de justiça é complementado pelo de equidade, que seria o ajustamento da norma ao universo real, ao caso concreto. E assim como o ser muda no tempo, da mesma maneira as leis precisam constantemente reajustar-se à sociedade.

 

Essa premência de transformação também decorre do fato de que o ser é com os outros (HEIDEGGER, §§ 25 a 27), já que está no mundo. A construção do da-sein está vinculada às múltiplas interferências que a interação social provoca e traz consigo toda a história vivida por aquele grupo, ao mesmo tempo que vislumbra um horizonte de possibilidades, um devenir. Igualmente, o Direito adota esta hermenêutica da facticidade. As normas de um povo a cada época refletem a trajetória vivida pela comunidade até o presente momento – semelhante ao “romance em cadeia” de Dworkin –, pretendendo, desse modo, escrever normas que preservem esta sociedade para as gerações futuras. Por exemplo, com o intuito de que as crianças do Brasil do ano 2100 conheçam a Amazônia, criamos hoje leis que assegurem este patrimônio público ambiental. Esta será a nossa história, nosso trajeto na formação de um sentido do ser brasileiro para estas. Assim, a interpretação do da-sein se faz no campo fenomênico sem, contudo, confundi-lo com o sujeito, com o particular. Este horizonte ôntico ou existentivo é a compreensão do ser a partir do mundo, no contexto (Vorsicht),  como instantâneos de fotografia tirados em diverso trechos da subida da montanha, nos quais ele vai gradativamente sendo mudado e reelaborado. Estes contextos são as condições de sua interpretação, com maior ou menor abertura, conforme a situação. Por isso a hermenêutica heideggeriana é também decadente (Verfalen; HEIDEGGER, §§ 35 a 37); não se encerra, já que o ser é infinito, mas posiciona-se de acordo com condições específicas que se alteram no curso do caminho de sua formação. Tais momentos são finitos, portanto decadentes. Não o da-sein.

 

Esta hermenêutica da facticidade no tocante à norma jurídica nos permite, entre outras ponderações, discordar da pretensão positivista de um direito estatal capaz de, sob sua égide, salvaguardar todas as situações fáticas de uma realidade social. Portanto, a norma jurídica pode ser interpretada, mesmo que não exclusivamente, por uma hermenêutica da facticidade, eis que assim contemplará o da-sein e suas condições de possibilidade de ser e do ser dentro do mundo. Tais condições são oferecidas conforme a temporalidade do da-sein, condicionando, como dito, a sua abertura para compreender, interpretar e proferir discurso (Zeitlichkeit; HEIDEGGER, § 65). O ser, na verdade, decide com base em uma realidade histórica (Anamnesis; GADAMER, 2007. p. 56-57) alterável ao longo dos anos e pelo processo de maturação do próprio sujeito, o que transforma paulatinamente as suas pré-compreensões. E uma vez alteradas, sua forma de articulação no mundo também mudará. Era aceitável para a sociedade brasileira de algumas anos atrás que o marido assassinasse a esposa adúltera em legítima defesa da honra. Essa argumentação não encontra hoje nenhum respaldo na Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Houve um maturação do da-sein – e não apenas de algum envolvido em casos concretos dessa natureza – que provocou a redefinição das relações sociais de afetividade conjugal, além do que seria o sentido do valor honra.

 

É de se constatar, outrossim, que Heidegger escreve tendo por parâmetro o mundo vivido, afastando-se da posição platônica e inferindo parte de sua teoria do mundo fenomênico aristotélico. Propõe, de fato, uma linha intermediária entre a linguagem conceitual, de natureza metafísica, e a facticidade (GADAMER, 2007. p. 53). Assevera que o ponto de partida inicial de tudo é o ser, não a linguagem, a qual consiste em um discurso cuja comunicação pode falhar ou ser mal traduzida por diversas razões. Isto acarretaria a perda de sua autenticidade, caracterizando um obstáculo grave para Heidegger, já que sua filosofia não conceitual fundamenta-se na possibilidade do ser comunicar o objeto (Vorhabe). O sentido do ser advém exatamente da predisponibilidade do objeto de ser conhecido pelo sujeito no mundo, por meio de suas pré-compreensões. O sentido deve ser comunicável, pois do contrário inexistirá Kehre. A apreensão do objeto se renova constantemente no chão da vida (GADAMER, 1997. p. 392).

 

Gadamer ressalta a grande questão levantada por Heidegger: pensar uma verdade filosófica permanente, admitindo-se também as mudanças do mundo fenomenológico. Desafio que toca, igualmente, o Direito. Como proteger, por exemplo, direitos fundamentais, que estariam acima da normatização regular mas somente por meio dela poderiam ser preservados internamente nos territórios dos Estados? Vida, liberdade, integridade e honra são construções históricas e o sujeito a que se destinam como garantias não é particularizado, mas, sim, o ser humano em geral. Não obstante, a regulamentação pelo direito positivo varia conforme o lugar e a época, ou de acordo com aquilo que as culturas diversas compreendem como vida, liberdade, integridade e honra. Como erigir uma verdade permanente deste último, por exemplo, para que as milhares de mulheres mutiladas todos os anos por seus familiares ou maridos sejam protegidas nos países cujas leis assegura ao homem tal direito? Interpretar historicamente se distingue do discurso relativista invocado, verbi gratia, pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) para permitir o assassinato de crianças mal formadas dentro de tribos indígenas sob a escusa de que não se poderia interferir no contexto de valores daquele grupo. Consoante Gadamer, é preciso se libertar da história prévia (2007, p. 55).

 

A respeito desse aspecto de historicidade, Heidegger expõe que o da-sein é respectivo; tanto conhece como é conhecido. Não possui começo nem fim, pois segue a linha dos acontecimentos que são encadeados e infinitos (Kehre). Há, então, um “conceber a partir da vida” (GADAMER, 1997. P. 385), pois o conceito, segundo este filósofo, nasce da experiência. Há uma constante formação de horizontes que se abrem em maior ou menor grau para que, o da-sein esteja sempre sendo. A historicidade, destarte, é um processo resultante da mobilidade do ser, que continuamente está em obra (Energeia; GADAMER, 2007. p. 67-68) e de sua existencialidade no mundo. É a práxis da vida que permite ao ser a sua auto-clarificação; somente assim pode ser conhecido. Logo, tanto a história quanto a razão são provisórias, pois seu fundamento é sempre reconstruído factualmente. Eis porque o Direito não pode se pretender concluído por sua mera inscrição nos códigos. A vida o ultrapassa. Conquanto seja imprescindível a sua organização sistemática, de modo que os magistrados possam aplicar a lei ao caso concreto e as partes possam entender a maneira pela qual as relações sociais devem se pautar cotidianamente, os fundamentos da norma jurídica não se esgotam na letra da lei nem começam com ela. Antecedendo-a, eles situam-se no plano ontológico, pois a verdade é maior do que o indivíduo que dela participa e, mesmo assim, historicamente.

 

Além disso, esse horizonte de possibilidades de interpretação e de apreensão do ser no mundo, hoje, já não correspondem ao paradigma aristotélico e estão influenciados pela cultura da técnica, cuja força a partir da Modernidade provocou o seu esquecimento (GADAMER, 2007. p. 71). Na verdade, como leciona Heidegger, a própria técnica não é conhecida em sua essência pelos que a utilizam, concentrando-se estes apenas na sua instrumentalidade. A sua essência, dirá, não é nada de técnico, mas algo que permanecerá sem ser experimentado até alcançarmos a liberdade de ultrapassar os moldes criados e buscarmos aquilo que a fundamenta em seu sentido originário, pois: “A técnica não é, portanto, um simples meio... é uma forma de descobrimento” (HEIDEGGER, 2002. p. 17). No Direito, por exemplo, com imensa frequencia os recursos racionais são empregados na esperança de que sejam capazes de abarcar e subssumir entre seus limites toda a realidade social de modo uno e fechado. O direito positivo, em grande parte, esforça-se para identificar o Direito com o texto da norma e este reducionismo nadifica-o. Nessa necessidade valorativa há uma aproximação entre Heidegger e Marramao:

 

“Dalla modernità abbiamo imparato che la tecnica rappresenta un fenomeno non completamente analizzato nella sua essenza. Tutta la filosofia del Novecento si è interrogata in modo approfondito sulla questione della tecnica e lo stesso Heidegger - uno dei più significativi filosofi del nostro secolo - si domandò quale fosse la sua essenza. Ritengo che a tale interrogativo non sia ancora stata data una risposta convincente. Per quale motivo la tecnica ha la capacità di rendersi autonoma dai suoi creatori? Perché può divenire indipendente dalla nostra volontà? Com'è possibile che si determini questa sproporzione tra la volontà umana e il mondo dei prodotti da essa creati? La divaricazione tra tecnica e cultura è un tema centrale della nostra epoca.” (MARRAMAO, 1999, [documento eletrônico])

 

Diante disso, como interpretar o direito posto sem alijar o Direito? O direito posto está contido na técnica jurídica de uma sociedade em certa época e tanto pode por ela ser ampliado quanto alijado, em razão das limitações metodológicas que a mesma apresente. Ao se transpor o ideal do Direito para o mundo jurídico, que se insere no mundo da vida, é preciso refletir para as perdas e ganhos que porventura acontecem. O Nada em Heidegger é esse distanciamento entre o ente e o ser, sua diferença ontológica (1988, p. 75). O ser não perde seu fundamento de verdade em razão dessa nadificação, mas o ente sim. Por isso, o tecnicismo é prejudicial ao Direito, pois focaliza o ente e o factual em detrimento do da-sein temporalmente maturado. Distancia-se (lontananza) do sentido fundamental que a norma almeja proteger posto evidenciar a técnica enquanto objetivo, não como caminho. Tal ocorre, por exemplo, quando legisladores afeitos ao uso estrito da técnica redigem normas pautadas em seus interesses particulares ou dos grupos que representam. Formalmente podem ter escrito com perfeição o direito daquele povo. Por outro lado, a essência do Direito poderá nem mesmo levemente ter sido experimentada. A norma, vazia de verdadeiro fundamento, frustra-se na tentativa de obter reconhecimento perante a sociedade em que é aplicada, pois esta é também um processo contínuo de reconfiguração a partir da interação entre mundo e ser em uma trajetória histórica que delineia suas feições. Há de se concluir que, não obstante a relevância das codificações, o Direito está além, está sendo e, portanto, somente na sua abertura poderá vir a ser o futuro cujo legado desejamos deixar. 

 

Referências 

 

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3ed. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petropólis: Vozes, 1997. 

__________ . Hermenêutica e retrospectiva: Heidegger em retrospectiva. v.1. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Vozes, 2007. 

HEIDEGGER, Martin. Essere e tempo. Trad. Pietro Chiodi. Itália: Longanezi, 1953. 

__________ . Sobre o problema do ser. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1969. 

__________ . A essência do fundamento. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1988.  

__________ . Ensaios e conferências. 2ed. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petropólis: Vozes, 2002.  

MARRAMAO, Giacomo. L’etica della comunicazione. Palestra ministrada no Liceu Clássico Plauto de Roma. Il Grilo, 18 de fevereiro de 1999. Enciclopedia Multimediale delle Scienze Filosofiche. Disponível em: <https://www.emsf.rai.it/grillo/trasmissioni.asp?d=330>. Acesso em 04 de agosto de 2010.

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