A questão indígena no Brasil: uma realidade transdisciplinar diante de um direito esquecido ou desconhecido (SUNAKOZAWA, Lúcio Flávio J.)

01/09/2010 16:18

Apesar dos temas que tomam manchetes da mídia nacional e internacional, neste inicio do século XXI, voltados para as questões econômicas, pautados na instabilidade e desvalorização cambial, quebras de bolsas de valores, socorros financeiros aos bancos, com certeza, a questão indígena ainda é um tema dos mais palpitantes, desafiador e polêmico, na atualidade, em todos os segmentos e rincões deste imenso Brasil. Várias etnias, línguas, costumes, culturas e searas do conhecimento, totalmente ignorados pela interpretação e aplicação do Direito tradicional, são alguns dos fatores que tornam complexa qualquer análise sobre as comunidades indígenas brasileiras. A presente abordagem, portanto, para efeito de metodologia, cingir-se-á em uma análise e exposição critica e reflexiva, fruto de experiências e comparações entre a realidade e bases teóricas, jurídico-sociais, que estão aflorando em alguns pontos do Brasil, próximos de comunidades indígenas, em determinadas situações e, de modo geral, sobre o atual cenário vivenciado pelos indígenas e seus descendentes pátrios.

        

Com base em dados da FUNAI (Fundação Nacional do Índio, criada pela Lei 5.371/1967) e relatos históricos, em relação aos aborígenes brasileiros, dão conta de que as duas civilizações estranhas entre si, portugueses e indígenas, encontraram-se pela primeira vez no Brasil, em 1500. Mas, indiscutivelmente, uma questão é pacifica: a presença anterior dos indígenas nestas terras. Todavia, existe muita polêmica sobre a origem dos indígenas em solo americano, onde muitos atestam sobre a descendência asiática, vindos através do Estreito de Bering até o Alasca. E de lá, através do istmo do Panamá, para o Brasil e demais países vizinhos. Cerca de 100 milhões de indígenas, segundo várias narrativas históricas, habitavam as Américas do Norte, Central e do Sul. No Brasil, chegaram-se a uma população de cerca de 1 a 3 milhões, na época do descobrimento, por Pedro Álvares Cabral. O aparecimento dos indígenas, em terras brasileiras, data de 10 a 12 mil anos atrás, enquanto a civilização branca, segunda mais antiga no Brasil, possui cerca de pouco mais de 500 anos. Recentes estudos arqueológicos indígenas, no Piauí e Bahia, ainda, apontam para mais. Alguns falam em 48 mil anos, segundo relatos, sobre os vestígios da primeira civilização, encontrados em São Raimundo Nonato, no interior piauiense.

 

No Brasil, são as seguintes divisões de etnias indígenas, com base na lingüística: tupi-guaranis (região do litoral ), macro-jê ou tapuias ( região do Planalto Central ), aruaques (Amazônia ) e caraíbas ( Amazônia ). A Fundação Nacional do Indio (FUNAI) menciona que vivem cerca de 460 mil índios, dentre 225 comunidades, que representam 0,25% da população brasileira espalhadas ao longo de todo território nacional. Na maioria das comunidades indígenas, ou nos quase 100 mil que vivem em zonas urbanas, é gritante e assustadora a condição sub-humana, marcada pela miséria, alto índice de mortalidade infantil, fome, doenças, falta de infra-estrutura básica, moradia e ausência de perspectivas, vez que sobrevivem à margem da sociedade brasileira. Com tantas culturas, línguas, costumes, distâncias geográficas e exclusão social, os temas indígenas são tratados como estranhos e não integrados à atual civilização brasileira. Carecem, em relação a essas comunidades nativas, de conhecimentos a serem realizados pelos não-índios, em todas as áreas das ciências naturais, usos, costumes, culturas, línguas, direitos, religião etc...  O tema, desse modo, é demais complexo, mormente quando a ignorância e desprezo tomam conta no seio da sociedade brasileira e pelos próprios dirigentes da Nação. Poucos e raros são os casos de consciência e conhecimento, pelos não-índios, do modus vivendi desse genuíno povo brasileiro.

 

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Avançar no conhecimento sobre o desconhecido, então, é muito mais do que os olhos possam alcançar o último ponto em mar aberto, a questão indígena exige uma visão, modo de pensar e agir, de forma transdisciplinar. E não apenas, enumerar várias áreas cientificas ou do conhecimento humano. E nem tão-somente executar as possibilidades e encontro dessas ciências. É preciso entender o que se passa no ser humano indígena, suas expectativas materiais e espirituais, sem impor-lhe normas de conduta que não lhe são próprias ou apropriadas. É preciso respeito ao próprio ser na forma como foi criado pelo seu Criador. Nesse diapasão, a Carta de Transdisciplinariedade editada no Primeiro Congresso Mundial de Transdisciplinaridade (Convento da Arrábida, Portugal, 2 a 7 de novembro de 1994), redigida porLima de Freitas, Edgar Morin e Basarab Nicolescu, que contém preceito fundamental para esse entendimento, assim exposta:

 

Artigo 1º - Toda e qualquer tentativa de reduzir o ser humano a uma definição e de dissolvê-lo no meio de estruturas formais, sejam quais forem, é incompatível com a visão transdisciplinar.

 

         É preciso, pois, reaprender e repensar todos os conceitos implantados pela cultura tradicional para conferir e compreender uma outra visão de vida e direito, de modo multidisciplinar, interdisciplinar e, sobretudo, transdisciplinar.  Uma das questões que podemos esclarecer, em rápida passagem, é sobre um direito indígenista que é o que foi construído por quem não é indígena e, talvez, pouco entenda da complexa cultura nativa brasileira, bem como de suas tradições, direitos e deveres. Todavia, por uma imposição meramente dogmática, impõem-se sobre todos, sem propiciar a razoabilidade de quem não fez parte dessa construção legalista. De outro norte, direito indígena é o direito genuinamente indígena, construído pelos indígenas, de forma consensual, ao longo da existência dos indígenas e voltados para os indígenas, sobre seus usos, costumes e sanções próprias. Apesar do respaldo do art. 231 da Constituição Federal Brasileira, que trata dos costumes indígenas, não encontra reconhecimento geral nas interpretações do próprio Estado. Em todo território nacional, vários exemplos de prisões (no âmbito da OAB Nacional, em sessão plenária, já houve denúncias de inúmeras prisões abusivas cometidas por ordem do próprio Estado-Juiz, na fronteira do Brasil com Paraguai) e julgamentos proferidos pelo Poder Judiciário que desconhecem, também, a Convenção 169 da OIT que foi ratificada pelo Decreto Legislativo nº 143, de 20/6/2002, e entrou em vigor em 2003.

 

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Um equivoco no direito pátrio é ensinado nas academias de direito para dizer que o direito dos costumes não mais existe no Brasil. Ou seja, o direito consuetudinário existe apenas para os países de origem anglo-saxão, pautados no sistema jurídico do common law. Esclarecedor, nesse sentido, é o artigo publicado pelo eminente advogado indígena Wilson Matos da Silva, honroso membro efetivo do Grupo de Trabalho de Assuntos Indígenas da OAB Nacional, que diz:

 

“Um exemplo prático das diferenças entre as visões indígenas e do chamado direito das sociedades não-índias foi apresentado no seminário pela advogada indígena Fernanda Kaingang Jofej. Para o povo Kaingang, a separação de um casal não é um problema civil, mas uma questão penal, e por isso tem formas de solução distintas.A plenitude do direito indígena percebe-se nas relações de família, casamento, propriedade, sucessão e crime. É um sistema jurídico completo com direitos e deveres, normas e sanções, criadas coletivamente por toda a comunidade, conforme as necessidades do grupo. No referido encontro falei da contradição da lei penal e CF, em relação ao objeto do crime tutelado nos artigos 213 e 214 e ss, posto que estes, são crimes contra os costumes, já os indigenas tem os seus costumes diferenciados assegurados no artigo 231 da Constituição, ex. Os indígenas contraem matrimonio muito cedo a menina após a primeira menarca aos 11, 12 anos, esta relação é crime contra os costumes dos não-indios, já que a menor de 14 anos prevê o art 224 do CP, é estupro com violência presumida.”

 

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De igual sorte, em sua maioria, as decisões judiciais que envolvem questões indígenas são apreciadas com morosidade superior a outras questões, diante da complexidade já mencionadas anteriormente, mas que poderiam ter um desfecho diferente do que se apresenta no atual cenário jurídico, invocando-se a proporcionalidade ou a razoabilidade como vetores maiores da justiça social e humanitária. O propósito deste debate é a provocação sobre o tema “Direitos Esquecidos”. Mas, é importante acrescentar, somente se pode esquecer aquilo que se conhece ou conheceu. Aquilo que jamais foi compreendido ou entendido é um direito simplesmente desconhecido ou ignorado e que provoca distorções e um retardamento nas decisões e políticas públicas que envolvem as comunidades indígenas.

 

Nas academias de direito residem o maior acervo de soluções e diálogos que possam contribuir com o direito das minorias. É possível mudar a mentalidade sobre o direito posto e o sonhado, a partir do ambiente acadêmico, que é um verdadeiro celeiro de esperanças, se estimulado, para quem pouco tem a seu favor, por uma questão de direito e justiça. A exclusão tem que ser inclusiva nas disciplinas dos cursos de Direito, para se entender o outro, o próximo e o conterrâneo. Sem igual, a instituição Ordem dos Advogados do Brasil sempre esteve em defesa dos direitos dos excluídos, das minorias e dos injustiçados, principalmente, no tocante aos direitos humanos e à dignidade humana daqueles que são desassistidos de qualquer proteção. A hipossuficiência econômica, material, cultural e jurídica exigem, em nome da igualdade jurídica, um tratamento diferenciado pela Instituição.

 

Pela primeira vez na história da Ordem dos Advogados do Brasil, em 2007, presidida pelo grande defensor da cidadania, Dr. Cezar Britto, ousou em criar a primeira comissão ou grupo de trabalhos para assuntos indígenas, onde está composta por advogados indígenas de diversas etnias (Dr. Wilson Matos Silva, Dra. Joenia Wapixana e Dr. Ubiratan Maia) e coordenada pelo conselheiro federal Lúcio Flávio J. Sunakozawa. O Grupo de Trabalho de Assuntos Indígenas visa promover estudos, analisar questões, apontar alternativas, sugerir providências, enfim, pensar e repensar a questão nacional que envolve os Povos Indígenas, pois ao contrário do que os menos avisados pensam, isso é uma questão, necessariamente, também de todos nós não-índios. Por isso, como dito acima, de forma oficial e pela primeira vez na história do Conselho Federal da OAB, inclusive, conta com a participação enriquecedora de colegas advogados de origem indígena, de várias partes do Brasil, que em muito poderão contribuir para uma solução com a necessária paz, harmonia e dignidade humana que deve reinar entre todos os brasileiros.

 

(...)

 

A questão indígena no Brasil ultrapassa a unilateralidade dos conceitos jurídicos, culturais e sociais, tradicionalmente vista pela sociedade. Existe um outro direito, silencioso, desconhecido, ignorado e que carecem de estudos, pesquisas e conhecimentos, alinhavados de forma multi, inter e transdisciplinar, para afastar os preconceitos e a ignorância sobre aqueles que são os mais genuínos dos brasileiros, inclusive, na seara das ciências jurídicas que desconhece o direito consuetudinário, o verdadeiro direito indígena, que alcança quase 50 mil anos de existência perante um direito constitucional de 20 anos e outros com pouco mais de 1.500 anos.

Enfim, através da paz e do amor fraternal, sob o pálio da Dignidade Humana Universal, tornam possível uma postura reconciliatória, harmonizadora e facilitadora para compreender a necessidade de resgate e respeito pelos usos, costumes, tradições, religiões, línguas e etnias dos indígenas que, apesar de sua antiguidade e diferenças, são totalmente excluídos da sociedade brasileira, apesar de serem os mais brasileiros dos brasileiros!                      



O Prof. Sunakozawa é Advogado, Conselheiro Federal da OAB, Coordenador do Grupo de Trabalho de assuntos Indígenas, ex-Coordenador do Curso de Direito da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul e autor de várias publicações sobre o tema.

Palestra proferida no Painel 14 – Direitos Esquecidos, de 13.11.2008, 14:30h, Auditório Lavoisier Maia,  na XX Conferência Nacional dos Advogados, promovida pelo Conselho Federal da OAB, de 11 a 15 de novembro de 2.008, em Natal (RN).

 

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