A caverna do Direito

23/08/2010 10:54

Todos nós já vimos ou ouvimos alguma referência ao mito platônico “A caverna”, se não o lemos no texto original, ainda que traduzido. A narrativa, por meio do diálogo entre Sócrates e Glauco, simboliza a busca pelo conhecimento e pela verdade. Revela também a escuridão produzida pela ignorância dos que se encontram acorrentados dentro da caverna, os quais estão sempre olhando para sombras projetadas ao fundo, sem nunca ver a realidade mais iluminada que habita no ambiente exterior. Esse medo da verdade, refletido na atitude inercial dos seres humanos criados na caverna, é enfrentado por um indivíduo que resolve vencer essa prisão (as correntes, o alto muro que fecha quase totalmente a entrada da caverna) e sair para a luz. Na conversa Sócrates expõe a Glauco outro ponto: além da luz da verdade, esse conhecimento do essencial deve ser uma procura pessoal, não um convencimento pela ação de outros. Os indivíduos dentro da caverna somente acreditarão que as coisas fora desse ambiente é que são as verdadeiras se de seu próprio esforço resultar esse vislumbrar da claridade. A narrativa reforça o quanto é difícil, talvez improvável, convencer-se alguém da necessidade de abandonar sua forma antiga, e isso nos serve muito para explicar a transição paradigmática do Direito atual.

 

Atualmente, o Direito no Brasil não enxerga além de “si”, e esse “si” é o parâmetro patriarcal colonial e pós-independente oitocentista. Os cursos jurídicos permanecem com a mesma estrutura curricular tecnicista de 1827, embora com alterações pontuais significativas, mas não plenamente inovadoras. Ampliamos a fresta de luz que projeta as sombras e permite ver o interior de nossa caverna, porém mantemos nossos grilhões, e por vontade própria. Nas palavras de Mangabeira Unger, o Brasil se encontra preso a um “colonialismo mental” que condiciona a estrutura de nossos cursos jurídicos a um modelo que, mesmo nos Estados Unidos e na Europa, já está ultrapassado; não é multidisciplinar, mas acolhe setorialmente algumas cátedras das ciências de humanidades com o fito de humanizar o currículo atual, desde que sua base não seja transformada. Exemplo desse receio de mudança é o foco das faculdades em concursos e no exame de ordem. Embora relevantes, resumem o Direito às razões de sua origem no Império: formar mão de obra qualificada e local para o serviço público e para servir às elites na sua relação com o Estado. Prova disso é a disparidade entre os ganhos de um defensor do povo e de um magistrado, especialmente das Cortes Superiores.

 

Enquanto os programas de pós-graduação acolhem bacharéis em Direito nas suas pesquisas (Economia, Sociologia, Filosofia, Administração, Relações Internacionais, entre outros), os programas da área jurídica manem-se fechado a qualquer colaboração exterior que possa mudar sua face. Sustenta alto o muro de sua caverna, com medo de descobrir a insustentabilidade de suas sombras, a começar, nas palavras de Deisy Ventura agora, seu apego ao título de “doutor” como forma de status social, não de grandeza profissional. A casta jurídica precisa se repensar, se inserir, abrir não somente as “portas da justiça”, como derrubar o muro do seu ramo de conhecimento e arriscar-se em outras searas. Manter uma definição de objeto de pesquisa e de instrumental metodológico, para assim definir-se enquanto ciência, difere substancialmente da incapacidade de dialogar, que revela, na verdade, ausência de substrato dos pensadores que não se arriscam, visto que somente uma atitude de medo e insegurança em seus argumentos pode justificar tal recolhimento.

 

A revisão dos currículos é, hoje, irrenunciável pelas academias, para corrigir as insatisfações que tanto docentes, quanto discentes e profissionais da área sentem em relação à formação oferecida nas faculdades de Direito. Mas que revisão se fará? Novos traços para a mesma roupa? Uma atualização do mesmo estilo? É preciso ousar, e ser também capaz de enfrentar os que não desejam sair da caverna, pois alguns ocupam postos relevantes na carreira jurídica e seu temor contamina o avanço de uma nova educação jurídica. Que se abram as portas, que nos lancemos à luz de um novo conhecimento, porque ele também será científico e bem elaborado metodologicamente. Basta aprendermos. Que a inércia dos que ensinam – receosos de que o “novo” prejudique seu status quo – não continue a prejudicar os que desejam aprender sempre mais.

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