A qualidade do ensino jurídico (DUTRA, Valéria de Souza Arruda)

21/03/2011 11:53

A qualidade do ensino jurídico não deve se restringir às tecnologias disponíveis à vida acadêmica. Antes, a qualidade do ensino passa pelo elemento humano; pela valorização do ser humano, das pessoas envolvidas na esfera da aprendizagem, ou seja, professores e alunos. Penso que o principal responsável pela qualidade do ensino jurídico é o próprio professor. Se este não se encontra comprometido com a tarefa que lhe foi outorgada – ensinar, orientar, esclarecer, incentivar, divulgar, aprofundar, estudar, pesquisar – como se pode falar em qualidade de ensino?

 

Infelizmente, o que observamos nos últimos anos é uma corrida frenética de pessoas aos cursos de mestrado e doutorado em Direito, além da proliferação de novos cursos de mestrado, os quais prefiro denominar ‘cursinhos’, pois se vê claramente a pouca ou nenhuma preocupação de seus instituidores na formação competente de um professor. As aulas são muitas das vezes quinzenais e com carga horária ínfima de leitura e de prática docente. Vê-se que o objetivo é oferecer títulos a alto custo (tais cursos não são nada baratos), sem a mínima preocupação na excelência da formação de um professor universitário com postura acadêmica.

 

Tal descuido redundará em que nas Instituições de Ensino Superior? Obviamente, teremos um quadro de professores pouco motivados, despreparados, desprovidos de didática e de comprometimento para com a qualidade do ensino por eles ministrados. Tal descomprometimento na formação acadêmica dos professores, possivelmente, ensejará no descomprometimento destes para com seus alunos em sala de aula e também fora dela. Esse descomprometimento compreende aulas repetitivas, com leituras e comentários pouco produtivos acerca de problemas cotidianos, mínima ou nula participação dos alunos em sala de aula e fora dela; incentivo nulo à pesquisa e à produção de artigos científicos; ausência de grupos de pesquisas; inatividade fora dos muros das faculdades de Direito; escassas ou nulas atividades de extensão; descomprometimento para com a comunidade acadêmica e para com a comunidade na qual a Instituição de Ensino Superior está inserida.

 

Outro importante problema que podemos observar é o afluxo de profissionais de outras áreas que veem a vida acadêmica como status social ou mesmo no linguajar popular, como um ‘bico’. É triste chegar nesta última conclusão, pois para muitos professores, dar aulas numa faculdade não é sua atividade principal, muito menos sua preocupação primordial. Trata-se apenas de um implemento em suas rendas. Nesse sentido, trabalham em seus escritórios ou exercem cargos públicos durante o dia, e à noite vão ‘dar uma aulinha na faculdade’. E o que temos diante de nós são professores fingindo que ensinam e alunos fingindo que aprendem, ou seja, temos diante de nós um ‘pseudo ensino jurídico’, sobrecarregado com o decorar artigos e alunos repetindo-os sem reflexão, sem olhar crítico. A preocupação atual é o ser aprovado em concursos públicos e isto se transforma no pano de fundo, na justificação para se adentrar num curso de direito, que prima por muita matéria despejada sobre os alunos, sem a preocupação de um pensar sobre o conteúdo dessas disciplinas jurídicas.

 

Quando esses professores terão tempo para pesquisar, para se dedicar à leitura, à produção textual, à participação em congressos e eventos acadêmicos e, principalmente, quando terão tempo adequado para prepararem aula? Quando terão tempo para atender aos alunos fora do espaço da sala de aula? Quando poderão orientá-los em pesquisas, quando poderão participar e coordenar grupos de pesquisas? Quando se dedicarão com seus alunos às atividades de extensão? E finalmente, quando e como poderão pensar o próprio Direito? No meio da correria diária, haverá tempo para criticar e questionar o próprio Direito, suas instituições e seus institutos jurídicos? Há um ditado popular que diz ‘quem trabalha não pensa’. A cada dia tenho mais certeza disso, pois no mundo em que vivemos, com a sobrecarga de tarefas desnecessárias que acumulamos, cada vez mais nos distanciamos do ‘ócio criativo’. Sobrecarregados, quando teremos tempo para criar, para questionar e buscar soluções criativas para os problemas que se nos apresentam diariamente?

 

Voltando à questão daqueles professores detentores de outras profissões, podemos afirmar que tais profissionais também retiram as vagas daqueles que estão com a intenção e se preparam somente para o exercício da vida acadêmica. Furtam a oportunidade daqueles que se preparam em cursos de pós-graduação Stricto Sensu considerados de excelência e, com tal atitude perpetuam a má qualidade do ensino jurídico no Brasil. O resultado é a colocação anual de profissionais do Direito no mercado, como sujeitos puramente legalistas, sem comprometimento com a pessoa humana, desprovidos de uma visão do Direito que busca integrar ética e ciência, uma vez que o ser humano não é somente racionalidade, mas também emotividade, afetividade e desejos. Preparar pessoas somente numa dessas asas, é impedi-las de alçar voos rumo a uma formação integral.

 

Outro problema é que aos poucos, a categoria dos professores universitários vai se enfraquecendo, pois muitos dos profissionais que concluem seus mestrados se colocam como subservientes do ‘mercado’. Para iniciarem na carreira ‘topam’ qualquer coisa. Aceitam baixos salários, ‘negociam’ com os contratantes, aceitam a regra de trabalharem mediante contrato de curto prazo e, em um ano de vida acadêmica, em determinadas instituições, findo o contrato são demitidos e substituídos por outros que aceitam passivamente as regras perversas desse mercado de trabalho.

 

Tais instituições não primam pela qualidade de seus profissionais. Almejam apenas aumentar seus lucros e se manterem num mercado competitivo dos detentores do capital, os quais ditam as regras e ai daqueles que não as seguem em silêncio. O que temos, então, são professores se sujeitando aos ditames dos interesses dos compradores finais do serviço, se sujeitando às ordens de alunos com mentalidade de ensino medíocre. Alunos que consideram uma boa aula, aquela em que o professor passou a matéria no quadro ou fez uma ‘apostilhazinha’ com tudo o que irá cair na prova. É a mediocridade instalada por todos os lados: instituições medíocres, professores medíocres, alunos medíocres, profissionais medíocres. Vejam o rumo que estamos dando às nossas vidas: o capital é quem norteia nossas escolhas e não a qualidade e dignidade de vida humana que norteiam nossas decisões.

 

Há também um problema que envolve as próprias Instituições de Ensino, que visando o lucro e numa propaganda que visa a atender ao gosto não esclarecido da comunidade estudantil e da comunidade como um todo, acaba por contratar pessoas que ocupam cargos públicos: promotores, procuradores, juízes, delegados, advogados de renome etc. Contudo, tais instituições de ensino se esquecem de verificar o currículo da Plataforma Lattes de tais profissionais e assim, sustentam um círculo vicioso no Brasil, muito comum nas faculdades de Direito de cidades interioranas. Um bom professor não se mede pelo status que sua outra profissão lhe confere. A excelência de um professor universitário está impressa naquele currículo Lattes postergado pelos coordenadores das faculdades de Direito descompromissadas com a excelência na formação de seus corpos docente e discente.

 

Não quero aqui, fazer generalizações de que todo advogado, juiz, promotor, procurador, delegado etc não sejam ideais para participar da vida acadêmica. Muitos profissionais dessas áreas são profundamente preocupados no aprimoramento de sua formação e na de seus alunos, possuindo um excelente currículo acadêmico. O que se visa alertar é que a inversão de valores é extremamente prejudicial à qualidade do ensino jurídico no Brasil. Trata-se de um alerta aos coordenadores de Instituições de Ensino Jurídico: ou eles optam pela qualidade ou em pouco tempo teremos um colapso das instituições e institutos jurídicos. A colocação de maus profissionais redundará em médio e longo prazo na proliferação de maus advogados, maus juízes, maus promotores de justiça, maus delegados de polícia, maus procuradores, maus juristas e principalmente, maus professores universitários. Será esta a sociedade com que teremos que lidar no futuro, por causa de nosso descomprometimento atual com a formação integral do ser humano? Isto é algo a se pensar.       

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