Adaptação social e democracia possível - modelo mertoniano

13/12/2010 14:29

Há anos, desde a promulgação da Constituição Brasileira de 1988, um conjunto de expectativas têm tomado conta do imaginário popular sobre o que seja a democracia tão sonhada. Essa versão da igualdade materializada encontra, é claro, obstáculos reais para a sua efetivação. assim, o que se "deseja" nem sempre, como todos sabemos, é o que se poderá alcançar utilizando os instrumentos de atuação política e jurídica disponíveis. Já vislumbrando essa distância entre o desejo e o real, o sociólogo norte-americano Robert King Merton desenvolveu um longo estudo sobre os modos de adaptação dos indivíduos às distorções entre as metas culturais socialmente estabelecidas - igualdade, democracia, renda, reconhecimento, etc. - e os meios institucionalizados por cada sociedade para permitir o acesso dos seus membros a tais bens. Os modos de adaptação refletem as tentativas de se chegar ao objetivo comum elos caminhos para tanto formalizados, entre eles o direito positivo, que rege as relações sociais contratuais, laborais, familiares, as garantias de liberdade individual, e assim por diante.

 

Merton diferencia as funções sociais em manifestas e latentes. Funções manifestas são aquelas praticas pelo grupo ou sociedade para alcançar um objetivo comum já definido. Através delas cada contexto social estabelece as metas que pretende adotar para manter a coesão do grupo e orientar a vida dos indivíduos (SABADELL, Ana Lúcia. "Sociologia Jurídica".  2002. p. 82). Os meios para se atingir tais metas deverão ser legítimos, ou institucionalizados, para que tenham respaldo dentro desta sociedade (Ex.: assaltar um banco e investir em uma empresa legal são duas atividades que podem gerar lucro, mas apenas a última é definida pelo direito institucionalizado como atividade lícita). Funções latentes são inconscientes, muitas vezes nem percebidas pelos indivíduos. Aqui, o autor emprega a expressão “mão invisível”, que também fora utilizada por Adam Smith. Por exemplo, uma empresa organiza uma festa para seus funcionários para comemorar o Dia do Trabalhador (função manifesta). Mas este evento serve para manter a fidelidade desses empregados em relação àquela, reforçando o institucionalismo (função latente).

 

Para Merton, o desajuste entre as metas estabelecidas , que o sociólogo denomina culturais, e os recursos disponíveis aos indivíduos para realizá-las (meios institucionalizados) provoca o surgimento de condutas não pretendidas, que direito tem a função de corrigir. O direito é elaborado conforme o contexto social e as metas socialmente definidas, para orientar a conduta dos indivíduos no sentido das metas culturais e, ainda, exercer controle social sobre comportamentos desviantes – adoção de novas regras pelo indivíduo ou parcela de indivíduos da sociedade, de modo a suprir as necessidades não atendidas pelo modelo vigente. Esse conceito de Merton explica como surgem situações reais favoráveis à ocorrência do pluralismo jurídico. Ocorre a anomia em muitas sociedades modernas, segundo o autor, porque as metas enfatizadas como primordiais pela sociedade são inalcançáveis pela maioria dos indivíduos. Como resultado, estes rompem seus laços com o modelo vigente, inclusive juridicamente, ou tentam realizar as metas definidas por meios não aceitos pela sociedade, como ocorre na luta de alguns movimentos sociais e no caso da criminalidade.

 

Merton classifica em cinco tipos os modos de adaptação que os indivíduos possam adotar em relação às regras sociais. A análise desses modos de adaptação nos revela muito sobre cada sociedade e a maneira pela qual seus indivíduos agem para satisfazer suas demandas particulares em um meio coletivo.

 

1. Conformidade: “O indivíduo adere plenamente às normas sociais, não existindo comportamento desviante.” (SABADELL, 2002. p. 84). 

 

2. Inovação: A partir da premissa de que os fins justificam os meios, o indivíduo tenta alcançar as metas culturais (Ex.: dinheiro, fama) por meios diferentes dos institucionalizados, já que estes não estão acessíveis. Para isso, utiliza recursos próprios, socialmente reprováveis. No entanto, o autor menciona que estes, em alguns casos, contribuem para transformar a sociedade. Tal ocorreu, por exemplo, com o surgimento do Rock, no início repudiado por parte da sociedade, depois incorporado ao modelo cultural. Outras vezes é realizada a busca pela meta de forma ilegítima e cujo desvio é maléfico para o meio social, como no caso de roubo. Nosso "jeitinho" é uma modalidade de inovação, cuja historicidade nos revela todo um modo de adaptar-se tipicamente brasileiro, como explicado por Roberto Damatta ("Carnavais e malandros..."), Lívia Barbosa ("O jeitinho brasileiro...") e Jessé Souza ("A ralé brasileira...").

 

3. Ritualismo: Há um comportamento desencantado do indivíduo, pois não acredita ser possível atingir as metas traçadas. Obedece às regras impostas, mas não age no sentido de concretizar as metas culturais – não possui os meios institucionalizados e nem busca outros disponíveis. Segue a “lei” como a um ritual decorado, sem reflexão ou questionamento. 

 

4. Evasão: O indivíduo não empreende esforços no sentido de manter-se coeso ao grupo. Age e vive “isoladamente”. Embora ainda permaneça no meio dos demais indivíduos, não segue as regras socialmente definidas (“direito legítimo”), nem busca os meios de alcançar as metas culturais. Merton cita como exemplo os mendigos (Ler "O nascimento de um cidadão", de Moacyr Scliar; "Vidas de rua", Cleide Moreno Maffei Rosa). A sua forma extrema é o suicídio. 

 

5. Rebelião: Rejeição do padrão existente (metas e meios) e oferecimento de uma proposta nova, que substitua a vigente. Propõe uma nova ordem social.Modos classificáveis como rebelião podem ser diagnosticados em positivos, como a atuação dos movimentos sociais ("William Castilho Pereira, "Nas trilhas do trabalho comunitário e social") e a luta brasileira pela redemocratização ("Projeto:Brasil nunca mais"), ou negativos, como as FARCs colombianas (John Frank Pinchao, "Minha fuga para a liberdade") ou o crime organizado brasileiro (Roberto Barbato Jr., "Direito informal e Criminalidade").

 

Diante do cenário brasileiro atual, como poderão os indivíduos e os grupos sociais se adaptar às novas demandas por direitos? Como se poderá instrumentalizar jurídica e politicamente essas demandas, assim como o processo de debate acerca delas, tendo em vista os múltiplos perfis que o "sujeito" ou o "cidadão", constitucionalmente previsto, hoje revela de si mesmo? As mudanças no modo de ser brasileiro, como salienta Jessé Souza, não permitem mais que se invoque as raízes coloniais para justificar a desigualdade de poder e participação de hoje. Há novos argumentos de elite que estigmatizam o "povo", no sentido de "os mais pobres" (Sueli Schreiber Silva faz excelente explanação em seu livro "Sentidos do povo"). E o que nos preocupa, na área jurídica, é o fato inegável de que há "direitos" sendo clamados por meios não institucionalizados e, ainda, que esses meios "paralelos" têm aumentado sua força perante o Estado e o ordenamento jurídico concebidos tradicionalmente, ressalvando-se as importantes transformações ocorridas especialmente na segunda metade do séc. XX. A caótica situação ocorrida há poucos dias no Rio de Janeiro é uma prova do conflito que a concomitância de duas formas de controle social opostas pode acarretar. Donald Black, sociólogo norte-americano da Universidade de Virgínia, em seus estudos sobre o que denominou a comportamento da lei esclarece que, considerando o formato de Estado de Direito vigente, não há possibilidade de conciliação entre duas formas de controle social distintas. Elas seriam, sempre, inversamente proporcionais: ao crescimento de uma corresponderia, obrigatoriamente, a perda de espaço e de poder pela outra.

 

Voltando-se mais uma vez à diversidade social que hoje caracteriza o Brasil, aliada à urgência de garantir o bom funcionamento da instituições democráticas (meios institucionalizados juridicamente para se atender às demandas dos indivíduos ou grupos), cabe-nos vencer o desafio imposto por esse contexto plural e, nem por isso, menos carente de ética e legalidade. Estamos vivendo nova época de adaptação social com vista à efetivação da democracia. De uma outra "democracia", distinta esta daquela outrora fora proposta pelos liberais dos séc. XVIII e XIX, ou da democracia social que tanto permeou os discursos no séc. XX. A fragmentação das demandas, a complexização das relações intersubjetivas e a crise do positivismo (não enquanto necessário sistema racional de organização das normas de conduta, mas enquanto atribuição de maior força à premissa da legalidade estrita do que a outros aspectos da vida em sociedade) resultaram no processo de adaptação dos indivíduos e de ressignificação das metas culturais brasileiras. Logo, a "crise das instituições" que presenciamos nas últimas décadas nada mais é do que consequência previsível do fato de que, alteradas as metas culturais e verificando-se a incapacidade ou insuficiência dos meios institucionalizados para a satisfação das pretensões dos indivíduos, novos instrumentos deverão (e devem) ser propostos.  

 

O papel do Direito, enquanto área de conhecimento, e dos profissionais das carreiras jurídicas é contribuir para essa reflexão de modo que um paradigma mais justo seja firmado. considera-se uma mudança paradigmática, já que, como dito por Black, a adotar-se a tipologia de Estado e controle social tradicionais, nenhuma forma de "coexistência" é possível, pois sempre serão excudentes as proposições feitas pela sociedade civil e pelo Estado. É claro, que uma "filtragem" sobre a legitimidade do que vem da sociedade, para evitar-se modelos negativos, será sempre um cuidado a se ter. Mas, igualmente, ainda é preciso maior atenção às atitudes estatais que, com a justificativa do uso do poder para o bem comum, desrespeitam direitos individuais (um notório exemplo são os precatórios, pagos com muito atraso, quando não o são pós-morte). Estado e sociedade civil terão que rever seus papéis na relação que mantêm. Desse modo, a adaptação dos brasileiros ao regime democrático efetivo poderã ser conduzida a "bom termo", para ambos.

 

  

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