Aplicação do princípio da resiliência à regulamentação dos instrumentos de gestão democrática das agências metropolitanas
11/02/2013 08:30(Excerto do artigo apresentado no I Seminário Internacional Cidade e Alteridade realizado em Belo Horizonte no ano de 2012)
TEMÁTICA: POLÍTICAS PÚBLICAS NO MEIO URBANO E RURURBANO
A Lei 10.257/2001, o Estatuto da Cidade (EC), aponta como um dos instrumentos de planejamento urbano para o cenário brasileiro a criação, quando recomendável, das chamadas regiões metropolitanas (art. 4º, II do EC), com o intuito de melhor atendimento das demandas dos munícipes pelas autoridades públicas. A grande vantagem da articulação conjunta das diversas esferas locais é evitar o “jogo de empurra” entre governos locais com bairros limítrofes, quanto à implantação de medidas e a realização de obras por um município sem refletir sobre as conseqüências sobre os seus vizinhos. Há, ainda, o reforço financeiro, já que empreendimentos públicos de maior vulto poderão ter a sua despesa, e também seus benefícios, compartilhados. Para tanto, foram criadas as agências metropolitanas, cuja responsabilidade é a organização dos instrumentos de gestão participativa das regiões metropolitanas (art. 45, EC) com o intuito de poder gerir melhor o ordenamento urbano e rururbano dos municípios parceiros.
2 O planejamento urbano compartilhado
Para assegurar que a identidade de cada cidade seja preservada é essencial a atuação do Observatório de Políticas Metropolitanas (OPM), pois este órgão regional se encarregará de coordenar as diferentes ações promovidas pelos municípios parceiros. Sua atuação é complementada pela Diretoria de Informação, Pesquisa e Apoio Técnico, também criada para atuar como órgão da Agência Metropolitana, tal como dispõe o Decreto estadual n. 45751/2011:
Art. 16. Ao Observatório de Políticas Metropolitanas, instituído pelo art. 3º da Lei Complementar nº 107, de 2009, compete:
I - obter, produzir e disseminar informações que situem a RMBH no contexto das demais regiões metropolitanas e na rede de cidades;
II - identificar experiências nacionais e internacionais, visando à difusão de experiências exitosas relacionadas à formulação e à gestão de políticas urbanas no espaço metropolitano;
III – integrar órgãos e entidades públicas e privadas destinados à produção e disseminação de conhecimento na área de governança metropolitana; e
IV - certificar experiências bem sucedidas de políticas e de gestão no âmbito da RMBH.
Parágrafo único. O Observatório de Políticas Metropolitanas inclui-se nas atividades da Diretoria-Geral da Agência RMBH.
[...]
Art. 20. A Diretoria de Informação, Pesquisa e Apoio Técnico tem por finalidade a estruturação e a operacionalização de sistema de informações voltado para o planejamento metropolitano, execução e controle das funções públicas de interesse comum, bem como a prestação de assessoria técnica relacionada à pesquisa na RMBH
Estes órgãos permitirão à Agência da RMBH compreender melhor a diversidade de seu território, característica fundamental de um cenário político-jurídico resiliente. A resiliência pode ser interpretada, como de modo mais comum se faz, sob o ponto de vista individual. Todavia, a proposta que se faz é de uma resiliência de cunho coletivo, inspirada na idéia de reconstrução hoje tão empregada na medicina e na psicologia, e que foi por nós defendido em nossa tese de doutorado apresentada na PUC Minas em março de 2012 (Aplicação do princípio da resiliência às relações entre Estado, Direito e Sociedade Civil). (...) Após serem delimitadas as normas regionais pelo poder público estadual, respeitadas as diretrizes gerais impostas pela legislação federal, os municípios devem promover a sua implementação em âmbito local para que as medidas conjuntamente decididas na esfera de gestão metropolitana possam ser efetivamente cumpridas. A Agência da RMBH e esta própria estão regulamentadas hodiernamente pelos seguintes estatutos:
a) Lei Complementar Estadual nº 89 de 12/01/2006, que dispõe sobre a RMBH;
b) Lei Complementar Estadual nº 88 de 12/01/2006, que dispõe sobre a instituição e a gestão de região metropolitana e sobre o Fundo de Desenvolvimento Metropolitano;
c) Lei Complementar Estadual nº 107 de 12/01/2009, que cria a Agência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte - Agência RMBH;
d) Decreto Estadual 45.751 de 06/10/2011, que contém o Regulamento da Agência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte e dá outras providências.
3 O princípio da resiliência
Tais estatutos têm por finalidade tanto organizar a atuação da Agência da RMBH, quanto criar instrumentos que realmente possibilitem a tomada de decisões integrada no território metropolitano. Esta percepção “comunitária” de resiliência foi desenvolvida no contexto latinoamericano e como contribuição aos estudos sociais tem sido muito valorizada pelos estudiosos europeus na atualidade. Segundo esta perspectiva, a análise das questões administrativas e sociais na relação entre estado e cidadãos por meio da aplicação do princípio da resiliência é recomendável porque, seja quanto a um projeto na área de saúde, de reordenamento urbano, de inclusão, ou outro tipo de política pública, é fundamental perceber que: “As estratégias de intervenção comunitária variam em função das diferentes realidades sociais e étnicas” (1). Logo, por meio da resiliência uma comunidade pode agir no sentido de alcançar níveis satisfatórios de bem-estar.(...)
4 Aspectos relevantes para análise do contexto metropolitano
As regiões metropolitanas possuem uma particularidade em relação à organização comum dos entes federativos... A distinção no campo jurídico interno é, considerando a Constituição da República Federativa do Brasil atualmente vigente (CR/1988), a função coordenadora do estado-membro quanto à organização destes espaços políticos locais, no caso da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) por meio da Secretaria de Estado Extraordinária de Gestão Metropolitana de Minas Gerais (SEGEM/MG). Os Conselhos das comunidades de países possuem menor autoridade do que aquela que é exercida pelas unidades federativas sobre os seus Municípios na regulação das áreas metropolitanas, pois embora exista o Conselho Deliberativo metropolitano a representatividade da autoridade pública estadual na composição das cadeiras que formam este centro decisório é muito significativa.
Por isso, a criação de uma agência metropolitana específica para uma determinada região é de fundamental importância, já que ela terá por principal função coordenar os esforços locais para objetivos comuns e, nesta relação constante de disputa político-social, conciliar interesses é primordial para que as metas de desenvolvimento porventura traçadas possam ser gradativamente atingidas.
(...)
A atuação integradora da agência metropolitana também visa corrigir distorções que as relações sociais e econômicas possam imprimir no espaço urbano, gerando desequilíbrios entre grupos de cidadãos. Infelizmente, a disposição urbanística tem refletido o sistema de classes sociais diferenciadas em cada época e a gestão desses espaços tem criado condições, por exemplo, para a administração e execução de obras de acordo com os interesses hierarquizadas desses grupos, atendendo muito mais às necessidades de parcelas mais privilegiadas. A exclusão de grupos economicamente mais fracos das disputas políticas metropolitanas para o atendimento das demandas dos cidadãos ainda precisa ser corrigida pela melhoria dos instrumentos de gestão participativa metropolitanos, pouco abertos a um monitoramento mais próximo e constante, já que o Fórum Metropolitano, por exemplo, embora seja mais amplo e acessível, ocorre com menor regularidade do que talvez fosse o recomendável.
Além disso, a união de esforços dos Municípios que compõem uma região metropolitana nem sempre decorre da similitude cultural entre os associados desta organização. Na maior parte dos casos, são as necessidades de regulação do transporte, da moradia e do trabalho que provocam a formação destas áreas com gestão compartilhada no caso brasileiro, o que significa o risco de um processo de não reconhecimento da heterogeneidade que forma a realidade metropolitana. Segundo a SEGEM/MG as regiões metropolitanas são definidas como “espaços vivos e dinâmicos, que reúnem milhões de pessoas de diferentes origens e concentram a maior parte das atividades econômicas, administrativas e culturais” (2). (...) Como explica José Murilo de Carvalho:
A parcela da população que pode contar com a proteção da lei é pequena, mesmo nos grandes centros. Do ponto de vista da garantia dos direitos civis, os cidadãos brasileiros podem ser divididos em classes. Há os de primeira classe, os privilegiados, os “doutores”, que estão acima da lei, que sempre conseguem defender seus interesses pelo poder do dinheiro e do prestígio social. [...] Ao lado desta elite privilegiada, existe uma grande massa de “cidadãos simples”, de segunda classe, que estão sujeitos aos rigores e benefícios da lei. São a classe média modesta, os trabalhadores assalariados com carteira de trabalho assinada, os pequenos funcionários, pequenos proprietários urbanos e rurais. Podem ser brancos, pardos ou negros, têm educação fundamental completa e o segundo grau, em parte ou em todo. Essas pessoas nem sempre têm noção exata de seus direitos... (3)
Essa situação de desigualdade entre os cidadãos de primeira e segunda classe afeta profundamente as relações entre sociedade civil e estado no âmbito das regiões metropolitanas porque interfere no justo equilíbrio entre eles quanto à gestão democrática, princípio essencial das políticas públicas urbanas e rurais como dispõe o art. 45 da Lei federal n. 10.257/2001, o Estatuto da Cidade. Muitas vezes é agravada pelo que se pode denominar de “inflação normativa" (4), que sobrecarrega os cidadãos mais simples com um amplo repertório legislativo e de regulamentos administrativos que os impede do livre acesso à participação na tomada de decisões nas regiões metropolitanas. Considerando a complexidade de se legislar para o território das regiões metropolitanas é preciso considerar, ainda, que tamanha heterogeneidade cultural provoca a “hipersubjetivação” do direito, pois o número de demandas cresce significativamente e todos os distintos grupos sociais que compõe o cenário metropolitano pretendem ver asseguradas suas prerrogativas junto à Assembléia Metropolitana e ao Conselho Deliberativo para que sejam atendidos satisfatoriamente (5). Quando as distinções apontadas entre os cidadãos de primeira e segunda classe prevalecem, tal representatividade é corrompida e os direitos fundamentais para a convivência no ambiente urbano e rururbano deixam de ser efetivamente garantidos.
(...)
Outro desafio para as agências metropolitanas é a forte preocupação com as chamadas “zonas de fronteira”. A cidade se tornou um espaço de intermediação das relações sociais em que a resolução das questões coletivas se expressa cotidianamente na disputa por políticas públicas de impacto local (nos bairros), como se expressa pelo Orçamento Participativo. E, ao longo da sua história, as cidades tanto desenvolveram novas formas urbanísticas que atendessem à vida dos indivíduos, como também formas de exclusão praticadas, muitas vezes, por meio de políticas de divisão de recursos e parcelamento do solo urbano. A cidade no Brasil recente, in casu Belo Horizonte, tem denotado um claro processo de construção de fronteiras: entre o público (Estado) e os cidadãos; entre a zona sul e a “zona oeste” (expressão que acaba sendo utilizada em Belo Horizonte para indicar todos os bairros “fora” da área nobre); entre as mansões e os barracos, que dividem uma mesma área urbana.
Mas, igualmente, entre os Municípios da região metropolitana, em cujas fronteiras residem moradores frequentemente desatendidos com a escusa, de cada diferente Prefeitura, de não ter sobre aquele logradouro nenhuma responsabilidade. Esse é um dos casos mais graves, pois existem dezenas de ruas na região metropolitana em que os moradores recebem duas guias de IPTU para ser pago no início do ano, enquanto nenhum serviço público lhes é oferecido. Logo, a investigação sobre a relação do exercício da cidadania e a qualificação dos espaços públicos em Belo Horizonte encontra nesses espaços de fronteira um obstáculo à democracia e às garantias asseguradas pela CR/1988. É preciso, então, ampliar as medidas de redução das distâncias provocadas pelo planejamento urbanístico de Belo Horizonte e demais municípios por meio da atuação integradora da Agência da RMBH, especificamente criada para atender a esta região geográfica.
Para sanar as dificuldades das zonas fronteiriças é necessário um planejamento conjunto que deverá ser implementado pela criação de regionais administrativas e projetos culturais descentralizados, quer sejam intermunicipais ou não, mas que atuem em parceria, com uma visão mais ampla das questões até o momento observadas apenas pelo enfoque local.
(...)
Ainda a respeito das relações desiguais entre os cidadãos na região metropolitana, seria possível afirmar, ainda, que a existência de um compromisso ideológico com uma determinada vertente de pensamento que ocupa o poder – o que por vezes acontece – pode ameaçar a diversidade cultural acima mencionada, pois esta corre, nestes casos, o sério risco de ser seriamente prejudicada, já que o predomino de uma elite junto aos órgãos de tomada de decisão na região metropolitana se transforma comumente em obstáculo ao reconhecimento de direitos e de sujeitos de direito, que é o fundamento do princípio da resiliência.
Muito ainda poderia ser dito sobre o urbanismo como ideologia, como discurso que mascara uma realidade em nome de um compromisso com a realidade social e com a reprodução de determinadas relações sociais estabelecidas. [...] Assim, existirão tantas cidades quantas forem as estratégias políticas em cena. (6)
Assim, os instrumentos de planejamento da gestão metropolitana precisam ser legitimados pela ampla participação popular... Por exemplo, em sua composição o Conselho Deliberativo possui cadeiras para dois representantes de Belo Horizonte, uma para representante do município de Contagem, outra para o representante do município de Betim e três para serem alternadamente ocupadas por representantes dos demais municípios que compõem a RMBH e que tenham sido eleitos, assim como os dois representantes da sociedade civil, na última Conferência Metropolitana (art. 5º, Lei Complementar estadual n. 89/2006). Para assegurar equilíbrio político e, deste modo, não comprometer as decisões jurídicas do Conselho, é essencial que a eleição dos representantes da sociedade civil e dos demais municípios da região metropolitana não seja maculada de nenhuma forma por influências ideológicas, sob o risco de deturpar a gestão democrática almejada pelo EC e pelo espírito da própria CR/1988.
Conclui-se, então, que somente por meio de um processo democrático de tomada de decisões – de cunho deliberativo e resiliente – poderão ser cumpridas, satisfatoriamente, as metas comuns dos municípios das regiões metropolitanas. No caso da RMBH, o papel de integrar esforços com respeito às diversas identidades culturais compete, claramente, à Agência Metropolitana, a qual deve assegurar a gestão democrática das PPCs de modo a incluir todos na categoria de cidadãos de “primeira classe”.
Referências
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BENTO, Leonardo Valles. Governança e governabilidade na reforma do estado: entre eficiência e democratização. Barueri, SP: Manole, 2003.
BREUS, Thiago Lima. Políticas públicas no estado constitucional: problemática da concretização dos direitos fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Forum, 2007.
CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
CHEVALLIER, Jacques. As transformações do direito. In: CHEVALLIER, Jacques. O estado pós-moderno. Tradução Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Forum, 2009. p. 115-182.
DURHAM, Eliane Junqueira. A dinâmica da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
HERMANY, Ricardo. (Re)Discutindo o espaço local: uma abordagem a partir do direito social de Gurvitch. Santa Cruz do Sul: EDUNISC: Editora IPR, 2007.
MELILLO, Aldo; OJEDA, Elbio Néstor Suárez (Org.). Resiliência. Tradução Valério Campos. Porto Alegre: Artmed, 2005.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pensar el estado y la sociedad: desafios actuales. Buenos Aires: Waldhuter Editores, 2009.
SCARPI, Vinicius. Cidade ou cidades? Algumas dificuldades metodológicas para o estudo do direito da cidade. In: BARRETO, Vicente de Paulo; SCARPI, Vinicius. Perspectivas contemporâneas do discurso jurídico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 147-161.
TROSA, Sylvie. Gestão pública por resultados: quando o Estado se compromete. Tradução Maria Luíza de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
(1) MELILLO, Aldo; OJEDA, Elbio Néstor Suárez (Org.). Resiliência. Tradução Valério Campos. Porto Alegre: Artmed, 2005. p. 47-48.
(2) MINAS GERAIS. O que são as regiões metropolitanas. Secretaria de Estado Extraordinária de Gestão Metropolitana, Regiões Metropolitanas, 27 de outubro de 2011. Disponível em: <https://metropolitana.mg.gov.br/regioes-metropolitanas/o-que-sao-as-regioes-metropolitanas>. Acesso em 23 de agosto de 2012.
(3) CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 215-216.
(4) CHEVALLIER, Jacques. As transformações do direito. In: CHEVALLIER, Jacques. O estado pós-moderno. Tradução Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Forum, 2009. p. 127.
(5)CHEVALLIER, Jacques. As transformações do direito. In: CHEVALLIER, Jacques. O estado pós-moderno. Tradução Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Forum, 2009. p. 134.
(6) SCARPI, Vinicius. Cidade ou cidades? Algumas dificuldades metodológicas para o estudo do direito da cidade. In: BARRETO, Vicente de Paulo; SCARPI, Vinicius. Perspectivas contemporâneas do discurso jurídico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 159-160.
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