Como a educação jurídica pode atuar junto às "zonas de fronteira"

18/10/2010 09:58

Há poucas semanas, em co-autoria com a aluna Arlete Soares de Oliveira, apresentei o artigo "A cidade e suas zonas de fronteira: as muitas faces de nossa urbanidade" durante o I Congresso Mineiro de Direito Urbanístico, organizado pelo Grupo Pólos de Cidadania, em Belo Horizonte. O texto faz uma análise do desenvolvimento planejado da capital mineira em comparação com os critérios de inclusão dos cidadãos nessa urbanidade moderna proposta pelo projeto (1894-1897) de Aarão Reis . Inicialmente, Belo Horizonte pretendia ser o contraste entre o progresso e o conservadorismo herdado de Portugal, refletido no estilo de vida da antiga capital, Ouro Preto. Tanto se buscava essa visão do futuro, que a Faculdade de Direito (atualmente integrada à UFMG) foi transferida da antiga capital para a nova em 1898. E, ao longo das décadas seguintes, Belo Horizonte manteve seu perfil urbano planejado, merecedor de reconhecimento (ver vídeo) e mantido no período de Juscelino Kubitschek como Prefeito de BH (1940-45), que construiu o complexo da Pampulha.

 

As simbologias da exclusão, no entanto, sempre estiveram presentes aqui como em outras grandes cidades. A primeira "zona de fronteira" era a distinção entre os que habitavam "dentro" da linha demarcada pela Av. do Contorno, e os que habitavam "fora", nas chamadas periferias (que antigamente englobavam bairros hoje muito valorizados, devido ao crescimento da cidade e sua proximidade relativa à área central). A título de exemplo, o bairro Barro Preto recebeu esse nome por causa da cor da lama, a qual seus moradores eram obrigados a enfrentar nessa zona periférica de outrora. A Faculdade de Direito situava-se, e ainda se situa, dentro dos limites da avenida. Daí a importância do Grupo Pólos de Cidadania e dos projetos de extensão desenvolvidos por outras faculdades de Direito na capital mineira, pois tais práticas tornam-se "pontes" entre os dois mundos que compõem a cidade. Especialmente porque, hoje, as fronteiras são outras. Não geográficas, mas simbolicamente divididas. A BH de nossos dias se divide em "região da Savassi" (zona sul) e "Z.N." (zona norte), como em outros lugares, sendo que as expressões citadas designam bairros não inclusos territorialmente em tais zoneamentos, de acordo com o Plano Diretor e a Lei de Uso e Ocupação do Solo. "Zona sul" ou "Savassi" representa quem "mora bem". "Z.N." é a sigla usada para "todo o resto": zona leste, oeste, cidades da região metropolitana (outra "zona de fronteira" existente), enfim, quem "mora mal" (passagem de ônibus mais cara ou necessidade de dois ônibus, longe de shoppings e lojas importantes, distante das melhores escolas e dos principais órgãos públicos).

 

Essa simbologia da fronteira é sentida na convivência social. As distâncias diminuem o acesso à faculdades e aos melhores empregos. Por isso, muitas pessoas se mantém nas vilas e favelas próximas à "zona sul", para obterem chances melhores. Por exemplo, as escolas públicas exigem comprovante de endereço nas proximidades para matricularem os alunos. Devem ser "vizinhos" destas instituições. E as melhores se localizam todas na "zona sul". Assim, moras nas comunidades permite, inclusive, ter o endereço certo para ser cidadão. Mas vencida a etapa da exclusão em razão da moradia (localização fora dos limites traçados), permanece a distância simbólica entre os moradores do mesmo território. Não é nada fácil para um morador de favela fazer uma faculdade, mesmo um curso jurídico. E são várias as razões. Em geral irá estudar em uma escola privada, o que significa que ou necessita trabalhar para custear suas despesas ou será usuário de bolsa de estudos como PROUNI (em vários casos, preencherá a ambas as condições). Quando trabalha, possui dificuldade para conseguir estágios bem remunerados - as empresas de engenharia pagam até muito bem, mas os escritórios de advocacia não - o que torna muito importante o atendimento dos Núcleos de Prática Jurídica aos sábados. Isso contribuiria para o melhor acesso pela população carente, também, já que a maioria também trabalha fora durante a semana. Cursos e projetos sociais também podem ser oferecidos na modalidade "verão" e "inverno", a exemplo do que já fazem outras áreas, como as Ciências Sociais (o curso de inverno na área de metodologia quantitativa da FAFICH/UFMG é famoso em todo o Brasil).

 

Porém, ainda que criadas oportunidades de participação das atividades acadêmicas mais intensamente, os alunos oriundos dessas "zonas de fronteira" sofrem o preconceito de sua origem social. Os "PROUNIs" são muitas vezes acusados de usurparem uma condição social de outros alunos e são apontados como de menor capacidade, o que é uma mentira diante da qual muitas vezes as IES se omitem. Não basta receber o valor da mensalidade do governo, é preciso criar normas para que os orientadores de projetos de iniciação científica, por exemplo, não excluam esses jovens durantes os processos de seleção de orientandos. O que nos leva a outra importante reflexão: quantos pesquisadores e orientadores negros as faculdades e universidades possuem? Quantos são portadores de necessidades especiais? Se não se pode demonstrar a inclusão na forma de compor o corpo docente, como se fará para incluir essa leva de alunos que advém das mais distintas origens. Há uma "zona invisível" , mas cruel dentro de muitas IES: discentes são divididos entre "boa safra" a "safra ruim" e as possibilidades de atuação na vida acadêmica vão sendo, gradativamente, limitadas para os segundos antes mesmo que consigam praticar qualquer atividade que revelasse seu valor estudantil. A "boa safra" em geral é formada pelos que consideram sua "zona" invadida por esses "forasteiros".

 

O Prof. Fragale já há muito tempo alerta sobre a "proletarização do Direito" não como um dever de se voltar ao elitismo anterior, mas como dura crítica aos que insistem em "fechar as portas". Porque, se se permite a entrada dos PROUNIs, mas se reservam as melhores condições a alguns protegidos, fica muito fácil defender o discurso da "menor qualidade". O sistema não é justo, apenas aceita o ingresso do "segundo grupo" de alunos para manter o caixa da IES, não lhes oferecendo oportunidade real de participar da vida acadêmica. Não é forma de educação jurídica o modelo que se sustenta sobre essa conduta antiética. A verdadeira EDUCAÇÃO JURÍDICA é a que desenvolve projetos como a Clínica Jurídica na Favela da Maré (Rio de Janeiro), como o faz a FGV; ou os Núcleos de Mediação em comunidades carentes, como o Grupo Pólos (UFMG); ou se preocupa com a inserção dos que são tratados como subcidadãos, a exemplo do debate sobre direito a partir de uma identidade indígena, como o faz a UFPA. A educação jurídica deve romper as fronteiras na cidade, nas áreas de floresta, no campo. Principalmente, deve se esforçar para não estimular as fronteiras simbólicas: preconceito, submissão, desrespeito à origem e às diferenças. A capacidade do aluno não está expressa na sua origem social, especialmente quando esta é fruto das condições a que foi submetido pelo próprio sistema. Arrisquem-se a abrir as vagas de seus projetos de pesquisa a todos e se surpreenderão com o excelente material humano que encontrarão. Ou optem por continuar o vigente sistema de "castas" da academia brasileira, o que será, realmente, uma pena. 

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