Degradação da docência em direito (CARVALHO, Evandro Menezes de)

13/06/2011 14:44

Recentemente, a Fundação para Pesquisa e Desenvolvimento da Administração , Contabilidade e Economia (Fundace) revelou que 80,5% dos advogados paulistas consideram o Poder Judiciário parcial e que meios econômicos, contatos pessoais ou filiação política têm um peso considerável no dia a dia dos tribunais. Essa pesquisa reforça o diagnóstico feito por Frederico Almeida na tese "A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil", defendida na USP. Para o autor, as elites institucionais, profissionais e intelectuais que controlam o sistema judiciário brasileiro possuem a mesma origem social, formaram-se nas mesmas universidades e tiveram trajetórias profissionais parecidas. Ou seja, a estrutura do Judiciário é fechada para o acesso de certos grupos, contrariando princípios republicanos e democráticos previstos na Constituição Federal. Segundo Almeida, a maior parte daquela elite provém de faculdades de direito tradicionais, como a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (FD-USP) e a Faculdade de Direito do Recife (FDR-UFPE).

Fatos recentes no âmbito dessas duas instituições parecem corroborar o que dizem aquelas pesquisas, ao sinalizarem que o poder político, em detrimento do saber jurídico, prevalece no espaço acadêmico. Em artigo publicado no Estadão no dia 3.10.2010, Luiz Olavo Baptista, professor titular de Direito do Comércio Internacional da USP, chamou a atenção para um concurso para professor titular em que dois membros da banca examinadora não tinham formação na área jurídica, não possuindo, portanto, condições objetivas para avaliar a qualidade do conhecimento jurídico dos candidatos. Em seguida, a professora titular de Direito Civil Teresa Lopez, em artigo publicado na Folha de S. Paulo (20/1/2011), admitiu haver uma grave crise institucional na FD-USP decorrente das injunções políticas internas e externas nos concursos para seleção de professores. O cargo de professor universitário deve ser preenchido com base em critérios exclusivamente acadêmicos, sobretudo quando se trata do cargo de professor titular. Este não é um título honorífico e exige daquele que o detém o exemplo cotidiano do exercício da docência e da pesquisa jurídica. Mas essa não parece ser a percepção da FD-UFPE que, recentemente, publicou edital para concurso de professor titular admitindo o exercício da função docente em regime de trabalho de 20 horas, e não somente de 40 horas com dedicação exclusiva, como seria desejável.

Provavelmente, o candidato selecionado fará da docência a sua segunda atividade profissional em paralelo com outra carreira jurídica magistratura, advocacia, Ministério Público, por exemplo, assumida como sendo a sua atividade principal. Ora, é evidente que os cursos jurídicos necessitam e devem ter no seu corpo docente advogados, juízes, procuradores, defensores públicos, promotores etc. Afinal, o direito é uma ciência social aplicada e tais profissionais trazem para a sala de aula e para os debates com os demais professores as contribuições de suas experiências vividas nos tribunais, nos escritórios de advocacia e nas instituições jurídicas nas quais trabalham. Essa contribuição é valiosa e essencial para a vitalidade do ensino jurídico. Mas ao tornarem-se professores, tais profissionais devem não ficar alheios ao universo da educação superior em direito que abrange, entre outros aspectos, uma prática e um conhecimento específico sobre as metodologias de ensino, de avaliação e de pesquisa, uma atualização constante no uso das novas tecnologias no processo de aprendizagem e a participação nos espaços associativos dedicados à melhoria da qualidade do ensino, da pesquisa e da extensão no direito.

Entretanto, ter um corpo docente somente composto por profissionais com dupla carreira dificilmente conduzirá a instituição de ensino ao nível de excelência acadêmica que dela esperamos. Sobretudo porque, como dissemos, a docência geralmente fica em segundo plano. Casos isolados seriam exceção a esta regra. Afinal, o que mais temos no Brasil são cursos jurídicos que dispensam professores com dedicação integral. E se esse modelo fosse vitorioso não teríamos as taxas de reprovação que temos no exame da OAB, por exemplo. É inegável que as duas mais antigas faculdades de direito do Brasil tiveram papel importante na formação da cultura jurídica nacional. Mas os fatos relatados sugerem que o modelo educacional de quase dois séculos ainda persiste. É preciso romper com essa tradição. E isso será feito quando se sacrificar o "poder jurídico" no altar da academia, repelindo critérios políticos na seleção de professores e comprometendo-se com a ampliação dos quadros com dedicação integral à docência e à pesquisa na graduação e na pós-graduação.

Uma instituição de educação superior que queira ser referência no ensino jurídico terá que contar com professores dedicados inteiramente à produção e à disseminação de um saber de outro nível: criativo, inovador e interdisciplinar, capaz de expandir os horizontes da dogmática jurídica e levá-la ao encontro das outras ciências cujas leis não são instituídas por desejo polftico. Tal como o juiz que administra a sua vara e o advogado que gere o seu escritório, o professor de carreira é imprescindível também para a gestão do projeto pedagógico da instituição de ensino superior que se toma cada vez mais complexa para atender e ultrapassar as exigências do Ministério da Educação, do mercado e da sociedade. Os professores que consentem com a degradação dos raros espaços profissionais da carreira docente são também coniventes com a crise de legitimidade das instituições jurídicas em geral. É preciso valorizar mais o saber e menos o poder nas faculdades de direito do Brasil. Do contrário, estaremos ensinando os alunos a quererem saber menos e poder mais.

  

Autor: Presidente da Associação Brasileira de Ensino do Direito, professor da FGV Direito Rio, bacharel em direito pela UFPE e doutor em Direito Internacional pela USP.

 

(Veículo: Correio Braziliense - Data: 13/06/2011)

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