Democracia no Brasil ou "democracia à brasileira"

17/11/2010 13:34

Durante o período da ditadura militar brasileira, o advogado e defensor de direitos humanos Sobral Pinto esteve presente no DOPS para interrogatório. Em uma dessas ocasiões, diz-se que foi informado pelo militar que o interrogava de que o regime que ora se implantava propunha uma "democracia à brasileira". Sobral Pinto respondeu: Existe "peru à brasileira", mas não "democracia à brasileira"; a democracia é universal. Estamos agora diante do mesmo questionamento: após a promulgação da Constituição da República de 1988 e considerando ainda os debates que agitam o Brasil nos últimos decênios (reconhecimento de etnias, como indígenas e negros; liberdade de imprensa; igualdade material entre homens e mulheres; diversidade sexual; liberdade religiosa; entre outros) estaríamos diante da tentativa de fortalecer, tanto quanto possível, a democracia no Brasil, ou por outro lado, fazendo uma "democracia à brasileira"? Pauto-me para iniciar esse diálogo no ato recente da CAPES de reconhece o direito à licença-maternidade das bolsistas de pós-graduação. Mais de vinte anos depois do nascimento da Constituição Cidadã, ainda haviam mestrandas e doutorandas que podiam ser jubiladas de seus programas ou perderem o apoio financeiro governamental se usassem desse benefício e, assim, afetassem os tão "pressionadores prazos" da pós brasileira.

 

Diversos direitos têm sido reconhecidos no Brasil nos últimos anos em prol de grupos antes alijados no acesso à justiça. Embora ainda persistam obstáculos, houve avanços inegáveis na educação, na área familiar e de adoção, no acesso ao mercado de trabalho (como no caso dos portadores de necessidades especiais), etc.. Ainda precisamos de uma longa batalha contra o preconceito estético, imposto tantas vezes pela mídia e pela moda, quem sabe promulgando um Lei da Medida nacional (norma que, na Argentina, impediu a indústria da moda de somente oferecer números de vestuário adequados para pessoas magras -  o que é ser "magro" hoje? - , impondo um padrão muitas vezes estimulador da bulimia e da anorexia). Sabe-se que ainda existem empregadores que demitem funcionários com esse fundamento pernicioso da "boa aparência", que esconde preconceitos étnicos e estéticos, na "divergência de opinião" ou "falta de perfil", que não raro encobrem a diferença religiosa, política ou contra a diversidade sexual. Há muito a trilhar. Mas o caminho já está sendo aberto, gradativamente, por cada brasileiro ou brasileira que fica atento aos seus direitos, que participa de um movimento social (ativamente ou em momentos de maior destaque) ou que elege alguém que o represente junto ao Estado.

 

Nesse ponto se concentra essa reflexão: a representatividade. Como erigir uma democracia enquanto valor universal em um Estado que corre sérios riscos de "segmentar" a representatividade e permitir o domínio do particular sobre o público? Se todos os diversos grupos possuem o direito de serem representados, também possuem a obrigação de não governar apenas para a maioria - a sua -, como explica Robert Dahl em seu livro "Poliarquia". Do contrário, a cada eleição, um sistema de "revezamento de poder" poderá mudar o ordenamento jurídico conforme o segmento momentaneamente mais forte deseje. Isso seria a tal "democracia à brasileira", fragmentada, de "cidadanias" e não DA CIDADANIA. O Estado francês há poucas semanas proferiu uma decisão respeitável por meio de sua Corte Constitucional: não proibir o uso de símbolos religiosos e culturais nos lugares particulares de convivência de tais grupos (in casu, os muçulmanos), considerando a liberdade religiosa, mas impedir a imposição dessas opiniões segmentadas ao coletivo tutelado pelo poder estatal francês, que se manifesta em lugares nos quais prevalece o interesse público. Como vamos fazer, então, para conciliar no Brasil, por exemplo, o direito à própria convicção religiosa, que pode ser monogâmica e heterossexual, com religiões que permitem a bigamia ou, ainda, com o direito à homoafetividade? É um grande desafio, pois, se qualquer um desses grupos prevalecer sobre o outro, por mais justa que seja sua demanda, a democracia perde. Não haverá "poliarquia", para a qual é imprescindível o direito à contestação.

 

Como distinguir, portanto, até que ponto o Estado pode regulamentar as liberdades? Quais os interesses públicos e quais os que possuem natureza apenas particular (de um grupo ou de um indivíduo)? Como legislar para o todo, ao mesmo tempo em que não se discrimina ninguém? Porque já se superou a utopia da Modernidade de que haveria uma possível "universalização" dos conceitos pela racionalidade instituindo um padrão para a sociedade civil. Existem "sociedades civis". A ideia de que, se formos todos racionais chegaremos a um ponto de comum é um mito. A democracia efetiva, como descreve Dahl, não se funda sobre essa "crença" na razão que uniformiza, mas naquela que é capaz de construir novos modelos de natureza plural. A questão central é: somos diferentes e, talvez, JAMAIS alguns de nós concordem com os outros, logo, COMO VIVER JUNTOS?

 

Fazendeiros, pequenos agricultores, industriais, operários, educadores, instituições de ensino, estudantes, exportadores, mircroempresários, comunistas, liberais, social-democratas, ateus, devotos, tamanho GG, tamanho PP, loiras, morenas, negras, artesãos, técnicos, doutores, etc.; enfim, os "diferentes" precisam aprender a coexistir. Até porque, com os problemas do nosso atual sistema eleitoral, o princípio da representatividade ainda precisa de muito revisão quanto aos instrumentos que podem efetivar a democracia no Brasil. Precisamos cooperar uns com os outros para garantirmos que o uso do poder estatal seja pelo bem comum, não pelo interesse particular, embora esse mereça ser preservado. Essa é a missão do Direito e do Estado hoje. Administrar interesses que podem nunca vir a ser conciliáveis plenamente. E fazê-lo de modo que a democracia seja universal porque pertence a todos, que a podem invocar para existir desde que permitindo a existência do outro, não porque os mais fortemente representados "universalizarão" os seus padrões, sejam quais forem.

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