Eçaraia

28/06/2011 09:48

"Eçaraia" é a palavra em tupi para expressar "o esquecimento", quando as memórias transmitidas de geração a geração são perdidas e, com elas, perde-se a história e, também, a própria identidade. O Brasil atual passa por um momento deste, assim como outrora passou a África do Sul, momento em que se questiona a todo instante se é melhor lembrar ou esquecer tudo o que aconteceu durante os anos da ditadura militar. O Ministério da Justiça, atarvés da Comissão de Anistia e da Comissão Justiça e Verdade, o Projeto Brasil Nunca Mais, as famílias dos desaparecidos que ainda não consegruiram enterrar seus parentes, os pais da atual geração de jovens que foram eles mesmos jovens ansiosos por liberdade de expressão, nenhum destes quer esquecer. O resgate da memória é para todos estes a manutenção da própria identidade e da identidade do país. O resgate também tem sido um esforço constante e difícil feito pelos povos indígenas (tão pouco nos resta das outras etnias e idiomas desses povos), cuja sobrevivência é constantemente comprometida pos esta perda de identidade e pelos interesses econômicos sobre suas terras. A respeito disso, nada contra que a Mãe Terra conceda seus frutos ao ser humanos, mas a expulsão dos índios por empresários, ainda nos dias de hoje, mantém viva a herança injusta do período colonial.  

 

Os judeus fazem um resgate contínuo sobre o Holocausto para que não somente seus descendentes, bem como os demais povos possam aprender a que grau de barbárie o ser humano pode chegar quando não fica atento aos seus valores, ou quando se permite manipular através de promessas lucrativas, xenófobas, discriminatórias. A memória é essencial no judaísmo, como a celebração da libertação do Egito, acolhida pelo cristianismo, a Páscoa, convertida por esta religião também na passagem para a vida eterna concedida por Jesus Cristo. Os ritos nos lembram os heróis, nos lembram os erros, nos lembram a origem de muito do que vemos hoje e vivemos como sendo "os nossos valores". Quanto estes valores se revelam pouco acertados, queremos negar, esconder ("mima", em tupi), deixar tudo em um estado de "eçaraia". Para se construir a "grande história", mortes, perseguições, saques, extermínios, legislações injustas, tudo é escondido no esquecimento. Falamos tão honrosamente do Código de Hamurabi, com certeza uma importante legislação da Antiguidade, mas pouco revelamos de suas crueldades. A Grécia antiga também não viveu apenas de ideais democráticos e de boa cidadania. O Iluminismo jogou seus raios de "iluminação e razão" apenas sobre alguns, notadamente burgueses, mas a História foi marcada pelas palavras libertárias da Revolução Francesa e da Independência dos Estados Unidos, também pouco ou nada inclusivas dos pobres, das mulheres e dos não-brancos. 

 

Por que "não esquecer"?! Paul Ricouer, como já comentamos aqui em artigo anterior (10/01/2011), afirma que há certos fatos para os quais existe o "dever de lembrar". Nossa história não os pode ocultar por muito tempo e, em certo momento, exigem ser passados a limpo. Os filmes "Uma cidade sem passado" (1990), de Michael Verhoven, e "Dossiê Odessa" (1974), de Ronald Neame, retratam a necessidade alemã de rever os fatos do nazismo e do holocausto após algumas décadas, mesmo havendo resistência do próprio povo alemão a princípio. Um marco na revisão histórica latinoamericana é o filme argentino, de Luiz Puenso, "A história oficial" (1985), que retrata o que aconteceu com os filhos dos desaparecidos políticos durante o regime militar argentino. "Mandela" (Bille August, 2007), "Um grito de liberdade" (Richard Attenborough, 1987), "O poder de um jovem" (John G. Avildsen, 1992), "Invictus" (Clint Eastwood, 2009) recordam a trajetória dolorosa do appartheid na África do Sul; "Hotel Ruanda" (Terry George, 2004) sobre o massacre que dizimou mais de um milhão de tutsis; "Submissão", sobre a situação das mulheres nas sociedades islmâmicas (Theo Van Gogh, 2004) e que resultou no assassinato do diretor do filme. No Brasil, buscam resgatar parte de nossa história, entre outros filmes, "Anahy de las misiones" (Sérgio Silva, 2001), "Cinco vezes favela" (Cacá Diegues, 1962, que serviu de inspiração para o documentário de 2010 feito por Cacau Amaral e Cadu Barcelos "5x favela: agora por nós mesmos"), "O ano em que meus pais saíram de férias" (Cao Hamburger, 2006), "Besouro" (João Daniel Tikhomirof, 2009) e "Canudos" (Sérgio Rezende, 1997). Todas essas narrativas retratam a vontade de revelar o que fora por anos escondido, é a vontade de "falar", "contar", "transmitir às próximas gerações" como método seguro de que tais fatos não aconteçam outra vez. Também representam a oportunidade se se narrar a história por outro ponto de vista: o da mulher, do negro, do pobre, etc. 

 

A revisão da legislação após a Constituição de 1988, o ativismo judicial, especialmente do Supremo Tribunal Federal reconhecendo direitos a segmentos excluídos de nossa sociedade, e o crescimento da atuação de órgãos estatais que ampliassem o acesso à Justiça e à justiça como o Ministério Público e a Defensoria Pública muito contribuiram para que o resgate da memória fosse feito. Porque, em termos bem realistas, a história escrita e diculgada é aquela que o poder autoriza e, se ele "mima" (esconde), o faz por meio de autorização legal. O direito e as leis são importantes instrumentos para "recordar" ou para "esquecer"; o conteúdo dos livros didáticos é determinado por norma jurídica, assim como as datas comemorativas da nossa "história" e as medalhas e premiações em homenagem a heróis que temos. Tudo isso é criado por lei, o que significa que não necessariamente é memória verdadeira; a memória construída durante anos em nosso país soente pode ser revista com a democratização, pois a ascensão à categoria de cidadãos obtida por grupos discriminados anteriormente (pobres, indígenas, homossexuais, portadores de necessidades especiais e, até, migrantes) e o oferecimento de novos canais de debate político foram essenciais para o exercício jurídico desta. A lei e a memória mantém uma relação de coabitação; são parceiras, cúmplices, simbióticas. Se o direito não for justo, a memória será inverídica fatalmente. Daí nossa preocupação - nós, brasileiros - em reconstruir a memória brasileria sob a égide da nova Constituição, das "novas leis", para assegurar que, dessa vez, se conte a verdade e se evite a "eçaraia" do que realmente aconteceu.

Voltar