Educação jurídica do direito processual diante da necessária evitabilidade de conflitos: urgência de adoção de uma postura crítica, criativa e pacificadora (SUNAKOZAWA, Lúcio Flávio J.)

01/09/2010 17:20

"O professor disserta sobre ponto difícil do programa.

Um aluno dorme, cansado das canseiras desta vida.

O professor vai sacudi-lo? Vai repreendê-lo?

NÃO.

O professor baixa a voz com medo de acordá-lo."

 

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE 

 

Prima facie, sem dúvida, a morosidade nas tramitações processuais é tema que vem preocupando grande parte da sociedade brasileira. O grande volume de ações judiciais vem criando um gigante impasse para o desempenho do Poder Judiciário e de todos os operadores processuais. De longa data, sabe-se que “nada nasce do nada” (ex nihilo nihil).  Logo, é imprecisa a idéia de que apenas a mera busca de soluções ou remédios processuais – somente na fase final de um conflito - ainda que pelos meios alternativos (tais como a arbitragem ou autocomposiçao, ou mediação, ou negociação etc...), se torne possível dar fim aos milhares de autos que se amontoam nos tribunais pátrios. É como se na busca pela cura de uma doença grave, como é o caso da AIDS, bastasse apenas receitas de alguns medicamentos ou indicação de outros tratamentos alternativos. Sem embargos, para a tentativa de barrar o avanço dos males dessa síndrome, foram  necessários investimentos em estudos e pesquisas sobre o vírus causador, além de campanhas maciças e constantes visando uma conscientização, inclusive de abrangência internacional, para mudanças de comportamentos de todos aqueles que estão sujeitos a situações de riscos para sua propagação. 

 

Para se conter um mal, portanto, não bastante apenas apontar remédios ou soluções (etapa final de um conflito), mas, de igual sorte, passa pelo desempenho de uma análise mais ampla e complexa, a começar por um sistema de prevenções ou de como se evitar o nascimento de um litígio judicial (anterioridade às fases de um conflito). Daí que, partindo-se da premissa de que não basta buscarmos SOLUÇOES para os conflitos latentes e cristalizados através das ações e recursos judiciais, urge também implementarmos um verdadeiro SISTEMA DE PREVENÇAO DE CONFLITOS,  para permitir um monitoramento e controle, por meio de técnicas e meios alternativos a gênese  dos conflitos e, portanto, combater o mal que assola o atual ambiente judiciário na sua raiz. Embora o tema aqui tratado, a principio, possa não agradar a alguns magistrados ou advogados ou outros operadores processuais, inclusive professores de direito, que estejam menos atentos ao papel fundamental que deve ser exercido por todos, indistinta e primordialmente, perante à sociedade, no tocante à responsabilidade ética, profissional e social, é fundamental a noção dessas responsabilidades antes de invocarmos os corporativismos profissionais e políticos para, apenas, assegurarmos mercado de trabalho. É o futuro da sociedade, interesse público, que está em jogo e acima de qualquer suspeita! 

 

A crítica ora exposta, destarte, impulsiona-nos para uma verdadeira e necessária mudança de comportamento, principalmente, dos operadores de direito que começa na sua formação de graduação. Partindo-se de uma análise sobre a atuação tradicional e cômoda, na maioria das vezes sob o espírito arraigado de idéias e estruturas de beligerância processual e conflitiva, para uma conduta voltada para a pacificação social como finalidade do próprio Direito Processual. Os operadores processuais, primeiramente, devem zelar para a constante busca da PACIFICAÇÃO SOCIAL, como já advertida nas lições do Prof. KAZUO WATANABE (USP), por meio de acesso a uma “ordem jurídica justa” e visando a obtenção da efetividade processual. De igual gume, jamais devemos nos esquecer sobre o caráter meramente INSTRUMENTALque exerce o Direito Processual, sendo de interesse maior dos processualistas a efetiva razão “chiovendiana” para dar abrigo da lesão ou ameaça de direito material a quem realmente mereça. A prevalência de uma "razão sistêmica", nesse diapasão, detectada por Habermas, que consiste no homem sobrepondo-se ao seu semelhante, em verdade, levaram ao bloqueio de muitos ideais evolucionistas da humanidade, em especial dentro da cultura atual repleta de avanços tecnológicos e virtuais, mas, sobretudo, de competição, corrida contra o relógio e de geração de constantes conflitos e lides. Adicione-se a isso, também, o fator TEMPO que, ao invés de ser um adjetivo do saber, tem sido encarado pela sua "distância temporal" (Gadamer) diante da necessária verticalização das duas maiores características do homem hodierno: a criatividade e a reflexão. Embora, sabidamente, o elemento volitivo para a formação e acúmulo de conhecimentos, como defende Ortega Y Gasset, não deva ser desprezado, logo, podemos reafirmar que tais marcas humanas e seu desenvolvimento, em sua maior parte, consistem em puro arbítrio individual...

 

Ainda, por outro norte, sofremos influências do mundo (Welt) e do meio (Umwelt), pois, segundo alerta da concepção luhmanniana, o sistema é autopoiético, ou seja, possuem autonomias e clausuras próprias, vez que ditadas as regras pela própria organização sistêmica em que participamos. Nessas tonalidades, ligados com as questões sociais ("ubi ius, ibi societas), os juristas têm discutido muito sobre esse distanciamento temporal e quantitativo em que as condutas "antijurídicas", produzidas pelo próprio homem, aumentam a cada instante e, por conseqüência, geram uma espécie de "crise de justiça" em nosso meio e sociedade. Entretanto, ao mesmo tempo, que essas transgressões se avolumam em quantidades, espécies e sofisticações sem que se alcance soluções céleres e/ou eficientes, respostas diversas são apontadas e sustentadas, mas, muitas vezes, sem o rigor dos acertos que se exige. As propostas atuais para as resoluções de conflitos, mesmo as antigas tais como as inspirações que levaram a concluirmos pelo atual modelo de Estado (Locke e Montesquieu), com tripartição de poderes públicos, nem sempre também atendem esses anseios, fazendo com que haja uma derrota no sentimento ético-jurídico que ecoa atualmente em toda as disciplinas das ciências jurídicas e, por conseqüência, nos meios forenses.

 

Nem a teoria hegeliana dos opostos (tese, antítese e síntese), como premissa do contraditório e ampla defesa de um "due process of law", mesmo aliando-se às respeitosas teorias de direito de ação judicial ou acesso à justiça (Mauro Capelletti) ou de direito à "ordem jurídica justa" (Kazuo Watanabe), ou ainda de uma instrumentalidade (Dinamarco) ou efetividade processual (Barbosa Moreira), concessa venia, estão sendo suficientes para atender a inflação de conflitos na atual sociedade... Isso porque há, sobretudo, uma ausência de compromisso do operador processual em entender e aplicar efetivamente tais enunciados doutrinários em seu cotidiano, renegando aos verdadeiros princípios processuais. O sistema da lide é encarado, simplesmente, pela maioria dos profissionais como meramente dogmático e sem necessidade de aplicação dos princípios processuais dos doutos mestres, dada a pouca importância que se dispensa nos bancos da graduação. Embora isso, inegavelmente, somente faça crescer o mercado profissional, proporcionalmente (v.g., vide o número de faculdades de direito no País que supera em muito os Estados Unidos e o Japão.), além de descrédito com a sociedade quanto ao sistema tradicional de resolução de conflito, por meio da tutela jurisdicional estatal. A predominância de uma cultura voltada para um sistema individualista, altamente concorrencial, demonstra também o descaso com o titular de um direito violado ou lesado, onde o sentimento de justiça falece a cada dia para o jurisdicionado, como bem destacou JOSÉ SARAMAGO.

 

"Suponho ter sido a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma câmpula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta de nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça (...) Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em ação, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste". (in: De la justice à la démocratie. https://www.forumsocialmundial.org.br/dinamic/tbib_Jose_saramago.php, 03.03.2005)

 

Esse passa exercer um papel secundário no cenário processual. Isso é bem visível nas cenas dos filmes e dos nossos tribunais, por exemplo, onde se destacam como atores principais o advogado, o promotor e o juiz... e, em segundo plano, a parte vivenciando a angústia e o sofrimento, seja para receber um crédito, provar sua inocência ou resolver um impasse que desnorteia toda a vida de um cidadão, de uma família ou de uma empresa – Segundo BOAVENTURA SOUZA SANTOS, ao fazer uma crítica ao sistema de Justiça vigente, “o sistema é tão burocrático que não se nota mais a presença de seres humanos nas ações”. (https://www.aojesp.org.br/tribuna/tribuna26/visao.html, 03.03.2005). Soluções para essas aflições da humanidade...? Sim,  são possíveis de encontrarmos, mas não estamos realizando de forma tempestiva, efetiva e satisfativa como esperam os jurisdicionados! Por óbvio, não podemos ser ingênuos a tal ponto de recitarmos apenas malabarismos jurídicos-processuais ou, crermos em "mágicas", ao lidarmos com problemas tão complexos... ou ainda, com subterfúgios de preservarmos apenas o campo profissional.

 

Uma coisa, porém, é provável! Longe de fórmulas ou rótulos, sob pena de banirmos a inteligência humana... a fluência deve ser natural, mas sob um pensamento critico e que exigem mudanças de  comportamentos pessoais, profissionais e sociais, e não apenas mudanças de mentalidades, frente aos conflitos criados e gerados pela própria postura tradicional dos operadores processuais. Necessária é a reflexão dos pontos do sistema processual, onde a geração de conflitos e as respectivas soluções pacificadoras crescem assustadoramente.   Precisamos rever e repensar, por exemplo, os paradigmas que norteiam o atual ensino jurídico... sob pena de pregarmos apenas por profissionais "tapa-buracos", onde se destacam no processo o advogado “estrategista”, o promotor “inteligente” e o “bom” juiz, invertendo-se a valoração dos atores e agentes de um litígio, além de sermos vencidos pelo descaso, superados pelo tempo e, principalmente, pela omissão sobre o papel ético-jurídico que é clamado de um jurista em relação ao verdadeiro interessado: a parte e a sociedade. Não se pode buscar, pois, apenas nota "A" no Provão ou nos concursos da OAB. (...)

 

 

 

Lucio Flávio J. Sunakozawa (Advogado, Conselheiro Federal e Membro da Comissão Nacional da Legislação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, ex-Coordenador e Professor de Direito da UEMS – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul)  

 

Excerto do artigo publicado no livro ANUÁRIO ABEDi, n. 3. Florianópolis: Fundação Boiteaux, 2005.  

 

 

REFERÊNCIAS  

 

BASTOS, Aurélio Wander. O Conceito de Direito e as Teorias Jurídicas da Modernidade. https://www.estacio.br/graduacao/direito/revista/revista1/artigo2.htm, 11.03.2005, 16:15h

 

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo. Influência do Direito Material sobre o Processo. 3ª.ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

 

CARNELUTTI, Francesco. Arte e Direito. Campinas: Edicamp, 2001.

 

DINAMARCO, Candido Rangel. Instrumentalidade do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987.

_______  Nova Era do Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2003.

 

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes, 1997.

 

GRECO FILHO, Vicente. Reformas, Para que Reformas. In: COSTA, Hélio Rubens Batista Ribeiro, RIBEIRO, José Horácio Halfeld Rezende e DINAMARCO, Pedro da Silva (Org.). Linhas Mestras do Processo Civil. Comemoração dos 30 Anos de Vigência do CPC. S.Paulo: Atlas, 2004.).   

 

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Introdução ao Direito Processual Constitucional. Porto Alegre: Síntese, 1999.

 

HABERMAS, J. Pensamento pós-metafísico. Estudos filosóficos. Rio: Tempo Brasileiro, 1990.

 

JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Faculdades de Direito ou Fábrica de Ilusões. Rio: IDES, 1998. 

 

SANTOS, Boaventura Souza. https://www.aojesp.org.br/tribuna/tribuna26/visao.html, 03.03.2005, 16:00h. 

 

WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e Sociedade Moderna. In: Grinover, Ada Pellegrini; Dinamarco, Cândido Rangel; Watanabe, Kazuo. Participação e Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. 

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