Governar pelo povo, para o povo e com o povo

01/11/2010 21:14

Segundo Friederich Müller, o povo é apenas um ícone artificialmente construído e resultante de um processo de seleção dos que usufruirão dos direitos previstos na Constituição. Esta escolha é feita por meio do direito positivo, que define quem são os cidadãos de cada Estado e qual a extensão das garantias que lhes serão conferidas. Conforme o contexto específico poderá haver maior ou menor abertura quanto ao critério de escolha daqueles que integrarão o conjunto do povo perante o Estado, o que invariavelmente afetará o que se entende por democracia e cidadania dentro de cada sociedade. Tanto o Liberalismo quanto o Welfare State mantiveram seus cidadãos sob forte tutela legal e, muitas vezes, promoveram seleções encobertas de seus cidadãos. Foram os membros da Escola de Frankfurt, já mencionada, os responsáveis pelos primeiros passos no século XX para libertar o Direito dessa inércia mental do positivismo acrítico, conforme expressão cunhada por Zagrebelskye promover a crítica aos textos constitucionais liberais, distantes da expectativa da sociedade civil.

 

Na década de 1960, T.H. Marshall fez uma análise profunda sobre os três aspectos da cidadania – civil, político e social – cuja implementação ao longo dos últimos séculos ocorreu em descompasso. Como asseverou, a efervescência liberal cuidou de assegurar o primeiro ao proteger o indivíduo frente ao Estado, como já dito, principalmente pautando-se pela garantia fundamental da liberdade. De modo geral, o constitucionalismo ocidental adotou esse modelo, conquanto esse direito, bem como a igualdade, figurassem na lei mas não fossem usufruídos pela totalidade das pessoas. O Estado do Bem Estar Social, mormente no séc. XX, criou programas cuja finalidade era garantir direitos sociais mínimos aos cidadãos, como moradia, trabalho e previdência. Porém, em ambos os modelos nem todos compunham a noção de povo e havia inúmeros subcidadãos, consoante expressão cunhada por Jessé SouzaDesse modo, a ausência de participação política efetivamente democrática, acirrou os debates e os conflitos entre Estado e sociedade civil. Não só o povo estava “sem voz”, como o direito positivista demonstrou ser insuficiente para reger as relações dinâmicas da vida social. Perdera sua normatividade ao estancar o dinamismo da interação entre a norma e a realidade, esquecendo-se que concretizar a norma é um processo estruturante do Direito de caráter contínuo e irredutível ao trabalho legislativo do Estado.

 

E, se refletirmos a partir da filosofia de Heidegger, poderemos inferir que o fundamento da norma jurídica, mesmo a constitucional, não é o texto escrito – lógico, técnico, racional – embora seja um instrumento para revelá-la aos seus destinatários e proteger com a força do Estado a sua cidadania. Outrossim, a essência do Direito reside para além do direito positivo que delimita os bens a serem protegidos. Ultrapassando-o, encontra sua existencialidade no “processo” que originou os códigos e as leis dentro de uma sociedade, ouvida esta. Assim, a cidadania completa também deriva de um processo histórico de maturação do ser, não apenas da formalidade legal. E o seu exercício vincula-se à vivência social mais do que à forma legislativa, embora – novamente se afirma – esta tenha sido indispensável para se garantir os direitos civis e políticos no período liberal e, a partir do século XX, os direitos sociais. Fugindo à simples abstração pura, Heidegger expõe que para existir, deve ser aí (da-sein: ser no mundo) e ser com os outros. Desse modo, o discurso de legitimação da autoridade política por meio de um governo “pelo povo, para o povo e com o povo” se torna inconsistente e irreal da forma como foi formulado pelo positivismo do texto da norma e pelos sistemas de representatividade por meio de uma elite política, que tutelaria um povo infantilizado. Distanciando-se do fundamento de verdade na distribuição de direitos entre os cidadãos e na criação de espaços de discussão coletiva, a lei utiliza o conceito de povo icônico, como descrito por Müller, um povo que não é cidadão nem “gente”, mas apenas uma representação política.

 

Para mudar esse cenário político-jurídico é preciso, então, transformar o significado dos conceitos povo e cidadão, diferenciando-os do conteúdo selecionado durante o período liberal e mesmo no Welfare State. Como afirmou Marshall: “A cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais”. O mesmo se pode afirmar sobre quem seja o povo. É também um status social e político assegurado pelo ordenamento jurídico de cada Estado de diferentes maneiras, não é uma categoria natural. Assim, tanto povo quanto cidadania resultam do contexto, do processo de distribuição de poder, das relações sociais hierárquicas, da estratificação social e do universo simbólico que forma a cultura de cada sociedade. E, ainda, sua acepção pelo Estado pode ser diversa daquela construída pelas pessoas que nele se encontram, provocando conflitos entre estes dois sujeitos políticos.

 

Assim, uma nova acepção do termo cidadania se desenvolve, hoje, mais ampla e inclusiva. O cidadão atual, diferentemente do descrito por Aristóteles no âmbito das polis e pelos revolucionários do Século XVIII nas declarações de direitos liberais, não mais pauta sua relação jurídica principal com o Estado apenas nos limites do princípio da representatividade e da subsunção à autoridade pública. Sem comprometimento da soberania estatal, há, em nossos dias, uma maior demanda pela amplificação da soberania popular que resulta na extensão, via de consequência, do significado da cidadania. Uma das provas foi já citada – novos canais de comunicação entre Estado e sociedade civil; outra é a exigência de accountability, já que o cidadão pretende não somente participar das tomadas de decisões, como estabelecer critérios de controle sobre os seus representantes que administram os bens comuns da sociedade. A criação de mecanismos de controle do cidadão sobre o Estado, como a ação popular e a ação civil pública, na área jurídica estrita, e a exigência de accountability, na área jurídico-política (princípio da moralidade, da eficiência, etc.), representam esse novo contexto estrutural no qual o ordenamento jurídico tanto autoriza tais instrumentos como é, também, forçado e se adequar a essas novas demandas.

 

A accountability é importante, pois possibilita a responsabilização do Poder Público por suas decisões na gestão da res publica. Seguindo também a linha do direito responsivo, anteriormente citado, impõe ao legislador elaborar leis socialmente preocupadas com as situações em que o Estado atue a serviço da sociedade. A accountability revela duas características essenciais da democracia: “a organização dos cidadãos para exercer o controle político do governo” e a “descentralização e transparência do aparato governamental”, como assevera Pinho. Medidas dessa natureza passaram a ser exigidas do Poder Judiciário após a Emenda Constitucional n. 45, de 30 de dezembro de 2004, que inseriu o princípio da razoável duração do processo no art. 5º (LXXVIII), na Constituição da República Federativa do Brasil, de 08 de outubro de 1988. Em razão desse novo dispositivo e da criação do Conselho Nacional de Justiça, foram estabelecidas metas de aceleração de julgamento de processos pendentes e cuja prolatação de uma decisão judicial se encontrava muito atrasada. Para tanto, foi criado o “processômetro”, uma forma de medição do cumprimento dessas metas e de controle da população e do próprio Conselho Nacional de Justiça sobre a atuação jurisdicional brasileira.

 

No entanto, a continuidade da regulamentação, pela via jurídica, da emancipação cidadã – ou participação popular junto ao Estado – é parte de uma modalidade de accountability vertical necessária para possibilitar uma relação mais equilibrada e, portanto, democrática, entre esses dois sujeitos, visto que, em termos reais, possuem desiguais frações de poder político institucionalizado e legalizado. Sem instrumentos jurídicos efetivos para reduzir a distância entre o cidadão e a autoridade que o governa, a proteção normativa daquele se torna quase impossível, tendo em vista duas razões, dentre outras: a) não se consegue garantir o respeito à diversidade de manifestações no espaço político havendo em uma situação de desequilíbrio de poder, sendo necessário capacitar os cidadãos; b) é inviável controlar a accountability do Estado sem reduzir a “assimetria informacional entre governo e cidadãos”. Sobre este último tópico, o princípio da transparência tem sido invocado e, em diversos momentos, aplicado na atualidade com o intuito de diminuir um pouco da escassez de informações dos cidadãos acerca das atividades estatais e, desse modo, permitir um controle social mais presente. A partir da leitura de Pinho, pode-se fazer a seguinte análise sobre accountability vertical no Brasil, no cenário posterior a 1988:

 

I – Novos mecanismos foram criados para controlar o Estado: orçamento participativo, gestão participativa, ação popular, mandado de segurança, entre outros;

 

II – Promulgação do Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado em 1995;

 

III – Criação de marcos legais, como a Lei Complementar n. 101, de 4 de maio de 2000 (Responsabilidade Fiscal);

 

IV – Aumento do associativismo e da organização dos movimentos sociais, com surgimento de outros atores no chamado Terceiro Setor;

 

V – Revolução descentralizadora concretizada por meio da Constituição Federal, em 1988, que atribuiu maiores responsabilidades aos demais entes estatais, notadamente os Municípios;

 

VI – Criação de instrumentos para o enforcement da accountability, como a Controladora Geral da União, em abril de 2001 e, também a título de exemplo, os sistemas eletrônicos de controle (internet), rádio e televisão governamentais (v.g., TV Senado, TV Câmara), dentre outros;

 

VII – Substituição de valores tradicionais – patrimonialismo, clientelismo, etc. – por valores sociais emergentes, tais como, liberdade de expressão e organização.

 

Mas, apesar da implementação dessas formas de se equilibrar a relação entre cidadãos e Estado, ainda persiste a assimetria informacional, pois nem todos os cidadãos têm acesso a estes instrumentos. As novas mídias ainda são restritas aos grandes centros urbanos e cidades de porte médio – o cidadão comum do Norte do país, por exemplo, depende de lan houses para exercer seu direito à conectividade –, o uso excessivo da linguagem técnica cria obstáculos à comunicação entre os sujeitos, a divulgação dos modos pelos quais o cidadão pode atuar perante o Poder Público ainda é insuficiente e os horários das oitivas populares, em geral, são inadequados, visto que a maior parte da população classe média e pobre não pode ausentar-se do emprego à tarde para participar, logo, ficando restrita às informações dos jornais e da mídia, por vezes controlados por grupos mais fortes economicamente e sem interesse na emancipação da cidadania desses indivíduos. Desse modo, fica reduzida a capacidade de ação dos cidadãos sobre o Estado para dele obter o atendimento de suas demandas.

 

A proteção normativa dos cidadãos, logo, depende tanto de uma mudança paradigmática, quanto do respeito ao pluralismo e, ainda, de um sério processo de implementação da accountability vertical. A regulamentação jurídica dos instrumentos que assegurarão essas condições de possibilidade da cidadania no Brasil é imprescindível, tendo em vista que em sua ausência se acirra o risco de que formas alternativas de solução dos problemas – inovação mertoniana – sejam produzidas pela população excluída, em razão da natureza insuficientemente democrática do sistema. Quando o processo de normatização é comprometido pelas deficiências políticas (ausência de accountability), os meios que assegurariam a cidadania efetiva são prejudicados. E, muito embora essa postura mais autoritária possa estar prevista no conjunto de normas que compõem o ordenamento jurídico vigente, a exemplo dos atos institucionais do período ditatorial das décadas de 1960 a 1980 em nosso país, não reflete o anseio de justiça da sociedade: “Una cosa es la justicia y outra la legalidad. Cuando sale a relucir la palabra justicia y nociones correlatas, lo primero es perguntarse para quién resulta justa una norma y según qué criterios es vista así”, como leciona Oliveira.

 

A emancipação, sim, reflete o projeto constituinte do Estado Democrático de Direito brasileiro, por ser pautada sobre a legitimidade política, essencial para que exista justa accountability vertical entre Estado e sociedade. E seu grande marco regulatório é a Carta Constitucional de 1988, da qual somos todos, de certo modo, intérpretes, sob pena de afastar a cidadania tanto do momento de criação, quanto de interpretação da norma, como ocorre na área política quando há baixo grau de atendimento dos critérios de accountability vertical. Um país em que a cidadania não fique desprotegida é aquele cujas formas de estruturação do poder, político ou jurídico, englobe democraticamente manifestações plurais de demandas por direitos e, aceite como processo natural a coparticipação dos indivíduos que formam o povo na tomada de decisões. 

 

Referências  

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 11ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 

GURVITCH, Georges. Tratado de Sociologia. 2ed. Rio de Janeiro: Iniciativas Ed., 1968. 

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MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Trad. Merton Porto Gadelha. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. 

MERRY, Sally Engel. Legal pluralism. Law & Society Review, v. 22, n. 5, 1988. p. 869-901. 

MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 3ed. Trad. Peter Naumann. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 

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MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? – A questão fundamental da democracia. 3ed. Trad. Peter Naumann. São Paulo: Max Limonad, 2003. 

OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito, política e filosofia: contribuições para uma teoria discursiva da constituição democrática no marco do patriotismo constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2007.

PINHO, José Antônio Gomes de; SACRAMENTO, Ana Rita Silva. Accountability: já podemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública, v. 43, n. 6, Rio de Janeiro, novembro e dezembro de 2009, p. 1343-1368. 

SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociología Jurídica – Introdução a uma leitura externa do Direito. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 

SOUZA, Jessé José Freire de. A construção social da subcidadania: para uma Sociologia Política da modernidade periférica. Belo Horizonte: UFMG, 2003. 

ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: Ley, derechos, justicia. Trad. Marina Gascón. 6ed. Madrid: Trotta, 2005.

 

 

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