Inclusão e cidadania: porque se importar

16/02/2011 09:36

Segundo Axel Honneth, a sociedade não se constitui apenas por necessidade de autopreservação, caso em que seria imprescindível o contrato. As relações intersubjetivas que se estabelecem entre o “eu” e o “outro” é que produzem a realidade social por meio dessa perene luta entre ambos para delimitar espaços e direitos, angariar estima social ou obter amor. Sua base de formação é, portanto, o conflito entre ambos para estabelecer os limites de (des)respeito que orientarão as suas relações intersubjetivas, que em Hegel atingiriam sua segunda etapa de reconhecimento na formalização dessas pretensões (HONNETH, 2009, p. 50; 60). O reconhecimento, via de conseqüência, situa-se nos sujeitos, que na relação recíproca que mantém aprendem a conceber-se (HONNETH, 2009, p. 63).

 

Honneth aponta, inclusive, que Hegel evolui sua teoria da eticidade nos anos posteriores a Jena para essa percepção do reconhecimento pelo “espírito absoluto”, ou seja, pela “intuição de si mesmo como si mesmo” que cada indivíduo inferirá de sua relação com o outro (HONNETH, 2009, p 71). E que este “aprender a conceber-se” somente ocorre no confronto com o outro, pois há uma pressão social para a reciprocidade (HONNETH, 2009, p. 78). Daí a necessidade de uma luta por reconhecimento, segundo Honneth, e que não teria sido contemplada por Hegel, uma vez que este situaria no campo metafísico a relação de reconhecimento, enquanto ela estaria presente nas relações empíricas do cotidiano social. Por exemplo, a “reciprocidade” nem sempre ocorre, o parceiro de interação pode não ter sido aceito (HONNETH, 2009, p. 91; 119-120).

 

Mas Honneth aponta a dificuldade de analisar o reconhecimento apenas com a teoria hegeliana, uma vez que seu caráter mais metafísico não explica, no contato com o mundo real, como o “eu” reagiria diante dessa possibilidade concreta de negação. Por isso recorre à teoria de Mead para explicar as relações intersubjetivas quando os sujeitos são privados de reconhecimento diante da “perspectiva de um ator que se conscientiza de sua subjetividade porque ele, sob a pressão de um problema prático a ser solucionado, é forçado a reelaborar criativamente suas interpretações da situação” (HONNETH, 2009, p. 126). Em Mead, enquanto o “me” conforma, o “eu” desafia (HONNETH, 2009, p. 140). E a influência social de um sobre o outro faz com que se equilibre a existência de uma comunidade normativa e com a formação de uma identidade particular que se autoafirma.

  

Mas apesar de Mead não haver explicado satisfatoriamente tal questão, ele traz à tona, segundo Honneth, uma reflexão olvidada por Hegel: “por que os indivíduos devem experimentar para com o outro sentimentos de respeito solidário”? Esta pergunta faz parte do debate entre o liberalismo e o comunitarismo, assim como dos debates mais recentes sobre reconhecimento. Assim, a característica que melhor definiria um modelo como liberal ou comunitário, mais do que a divisão social do trabalho ou a autorrealização, seria o modo como o outro é percebido no convívio social, principalmente diante da provocação que este constantemente faz para ser visto, ouvido e respeitado. A reflexão central é, portanto:

 

Por que me importar? (HONNETH, 2009, p. 154)

... nós só estamos preocupados com aqueles eventos, só somos afetados por aqueles procedimentos, que têm relevância direta, imediata, para o modo como compreendemos nossa vida... pelas quais somos afetados (HONNETH, 2008, p. 72)

 

Para explicar o oposto do reconhecimento, Honneth descreve o processo de reificação, que seria a contra-ação, o “não reconhecer” o outro e negar a sua acessibilidade existencial de sujeito. Portanto, em Honneth, reificar é mais do que meramente instrumentalizar o outro, tornando-o um meio para se atingir determinados fins. Reificar é negar a existência desse outro (HONNETH, 2008, p. 71). Seria uma deterioração da relação intersubjetiva entre o “eu” e o “me”, podendo gerar uma das formas de desrespeito citadas em sua obra. Como assevera o autor: “Sem a experiência de que o outro indivíduo seja um próximo/semelhante, nós não estaríamos em condições de dotá-los com valores morais que controlam ou restringem o nosso agir” (HONNETH, 2008, p. 73).

 

Se não tomamos conta da existência do outro, o reificamos, tratamos “apenas como um objeto inanimado, uma simples coisa” (HONNETH, 2008, p. 75), a exemplo do que fizeram e ainda fazem os escravagistas, mesmo com a proibição da lei brasileira de exploração do trabalho humano. Ou como ocorre em todas as estradas brasileiras, onde meninas são prostituídas e mesmo vendidas por seus familiares a caminhoneiros. Ou como nos conflitos entre Estado e sociedade civil para inclusão de direitos novos na legislação, o reconhecimento da existência do outro ajustaria o diálogo entre as partes. São exemplos a contínua batalha das mulheres por respeito à sua integridade física e emocional, a luta pelo reconhecimento dos relacionamentos afetivos entre pessoas do mesmo sexo, a defesa dos imigrantes que são explorados e até escravizados nas metrópoles brasileiras.

 

É preciso se importar com a ofensa que tais situações reais são para o direito porque é inconcebível um ordenamento que se acostume a elas e pretenda, ao mesmo tempo, ser considerado equânime e democrático. A cidadania ou subcidadania brasileira, para ser desenvolvida, exige a aceitação das diferenças, a tolerância com os limites impostos a nossa conduta pela existência do outro, visto que é dessa dialética da vida que se constroi a vida comum nas sociedades e dela depende também nosso bem estar. Não é uma questão de concordar com todos e tudo, todavia a capacidade de admitir que, embora discordemos, o outro possui os mesmos direitos de existir e demandar. Se tais demandas forem conflitantes, conciliá-las não pode consistir em submeter o mais fraco (política, social ou economicamente). A exemplo do que leciona Robert Dahl, é necessário evoluir da democracia para a poliarquia, erigindo um sistema político-jurídico capaz de permitir a coexistência dos inúmeros outros que com o “eu” irão permanentemente negociar espaço e liberdade. Não é tarefa fácil, pelo contrário, mas antes o árduo esforço da tolerância do que a simplicidade da escolha ditatorial.

 

 

Referências

 

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ed. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2009.

HONNETH, Axel. Observações sobre a reificação. Tradução de Emil Sobottka e Giovani Saavedra. Civitas, Porto Alegre, v.8, n.1, jan-abr de 2008, p. 68-79. 

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