Justiça restaurativa infanto-juvenil e responsabilidade parental

11/04/2011 15:34

A concepção de novos valores para as relações intrafamiliares tem sido o elemento norteador das transformações jurídicas dos últimos decênios. Fundada na reavaliação de papéis na família, essa nova postura frente à infância e à adolescência tem sido adotada pelo Poder Judiciário brasileiro a partir de um processo contínuo de construção jurídica de novos conceitos para o direito de família, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência. Reflete uma tendência do direito internacional, respaldada na defesa dos direitos humanos da criança e do jovem, que vem sendo aceita pelo ordenamento jurídico nacional. Os filhos desocupam sua anterior posição de objetos do pátrio poder na relação familiar, para ora serem protegidos e ouvidos enquanto sujeitos desse grupo social com o qual mantêm ampla interação. Sob a influência de uma sociedade pós-industrial e, portanto, altamente urbanizada e individualizada, o paradigma do pátrio poder tem sido substituído por uma nova postura dentro da relação familiar. Fulcrada na valorização da criança e do adolescente enquanto sujeitos de direitos, a responsabilidade parental surge como um instituto da mais alta importância para a garantia da infância saudável como um direito fundamental de todo ser humano. Consiste na autoridade – poder – exercida por quem detenha a guarda do menor, cumulada de um dever de proteção das prerrogativas humanas essenciais do indivíduo em formação que a criança e o adolescente representam. Se família permite ao ser humano o acesso aos seus direitos de cidadão, servindo-lhe como um referencial no mundo, seu intuito deve ser o de sua formação humana, como prescreve o texto constitucional e a legislação infraconstitucional brasileira. 

 

De acordo com Luiz Edson Facchin ("Direito de família", 2003. p. 70), a família no Direito reflete a composição social da época em que as normas são elaboradas. Destarte, conclui-se que o aumento de importância da filiação afetiva em relação à consangüínea nos últimos anos justifica uma defesa mais completa de todos os envolvidos nessa relação de convivência que vem a formar o meio familiar hoje. Com o fito de se alcançar os valores familiares e sociais constitucionalmente assegurados, os direitos e deveres dos pais tangentes à prole, como das pessoas que atualmente a lei permite que ocupem esse lugar na composição da família, devem dirigir-se à proteção da pessoa humana da criança e do adolescente. É primordial que se mantenha a dignidade deste em seu locus nascendi et vivendi por meio da socialização dos deveres familiares nesse novo contexto normativo brasileiro. O exercício da autoridade materna, paterna ou outra se sujeita, então, a princípios novos que garantem o melhor desenvolvimento humano – físico, emocional e psíquico – da criança e do adolescente e pode, inclusive, ser exercido por outra pessoa, se para o melhor interesse do menor: Art. 19, Lei 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente - “Toda criança ou adolescente tem o direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária...”.  

 

Modernamente, infere-se dos princípios gerais do Direito, da doutrina pátria e estrangeira, bem como da própria realidade atual, que o pátrio poder não se exerce sobre a pessoa dos filhos, mas consiste em um munus de zelo pelo seu desenvolvimento regular e sadio, reconhecendo-os como sujeitos. Consoante Norbert Elias ("Sociedade dos Indivíduos"), esse efeito é de extrema importância, na sociedade vigente cada qual possui sua identidade como integrante de um grupo, sem sofrer a perda da sua identidade individual; ambas não se confundem, mas se ajustam para o bem viver. Reflexo disso, a família moderna se transforma em núcleo formado por pais e filhos, de natureza profundamente comunitária e igualitária. A autoridade nesse meio, nos moldes da família burguesa, passa a ser questionada, originando problemas sociais que nos cabe tentar responder. Com a inserção de novos princípios de proteção dos direitos subjetivos da infância no Brasil pela atual Carta Magna, esta relação de poder, embora ainda não transformada socialmente por completo, passa a delinear uma nova realidade sócio-jurídica para os responsáveis quanto à criança e ao adolescente – hodiernamente, nem sempre esse posto será ocupado pelos genitores. Este novo perfil da cidadania brasileira acolhe um princípio fundamental em defesa da infância e da adolescência, a responsabilidade parental

 

A dignidade da pessoa humana do menor, alterando o conceito de poder familiar, caracteriza-o como um exercício de atribuições, não sobre a criança e o adolescente, mas em relação a estes visando o seu bem estar. Este é o real sentido do “dever de assistir, criar e educar os filhos menores”  que a Carta Magna brasileira quis assegurar a essa categoria mais frágil de cidadãos (art. 229, CF/88). São reconhecidos quanto aos menores direitos fundamentais próprios – como preceitua o Estatuto da Criança e do Adolescente – derivados de sua condição específica na relação intrafamiliar, tais como: a) respeito à vida e à integridade física, psíquica e emocional; b) direito à convivência familiar sadia; c) direito ao nome e à verdade biológica; d) direito ao afeto, entre outros. Entende-se, portanto, que são três os pilares do direito de família brasileiro atual, condutores da relação jurídica entre pais e filhos: a) o direito equânime dos pais ao exercício do poder familiar e o seu correspondente dever (art. 226, §5.º e art. 229, primeira parte, CF/88) b); o direito à paternidade responsável, envolvendo a proteção da vida e da verdade biológica ante a liberdade do casal em fazer o seu planejamento familiar (art. 226, §7.º, CF/88); c) e a responsabilidade parental (art. 227, caput e art. 229, primeira parte, CF/88), exercida por qualquer um que detenha a tutela da criança e do adolescente, fundado em um vínculo de afetividade, consangüíneo ou não, e que assegure ao menor sua individualidade e a liberdade, sob orientação e não sujeição do tutor, para desenvolver sua personalidade.  

 

Há de se combater, assim, essa visão meramente policial do “menor”. Não significa se deslocar a perspectiva das relações familiares dos pais para os filhos, nem do Estado para a criança e para o adolescente. Longe de pretender apenas difundir uma mudança de ponto de vista, a missão das academias jurídicas é a criação de uma doutrina específica sobre a responsabilidade parental enquanto dever dos pais, equilibrada com o direito destes ao poder familiar, já que o exercício de sua autoridade continua a ser imprescindível para a correção do caráter e formação de valores junto à criança e ao adolescente. Esta imagem da Justiça, com o fiel da balança bem equilibrado entre as partes envolvidas nesta situação de direito é o que se busca no Direito atual. Mas é preciso que se compreenda a inexistência de uma ameaça da autoridade parental pelo contrapeso da responsabilidade dos pais. Tão somente, a Constituição da República Federativa do Brasil e o Estatuto da Criança e do Adolescente objetivam nos mostrar o caminho mais adequado à nossa formação social recente para o estabelecimento de situações justas e igualitárias entre os membros do núcleo familiar com direitos e responsabilidades para todos. 

 

O próprio Estatuto prevê medidas sócio-educativas para recuperar o menor infrator em seu art. 112: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semiliberdade, internação em estabelecimento educacional. Já existem programas sociais – exemplo disso encontramos nos Municípios de Belo Horizonte e Contagem, Minas Gerais – em que se promove a participação da própria sociedade em projetos de liberdade assistida acompanhada pela comunidade. Essa orientação não pretende evitar que a criança ou adolescente infrator deixe de ser responsabilizado, como se prega. Contudo incentiva práticas educativas para restaurar no jovem a crença de que seus direitos fundamentais são respeitados e, portanto, cabe a ele o respeito recíproco aos seus semelhantes. A proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente é, realmente, atribuir aos responsáveis pela educação e formação do menor as conseqüências por sua omissão. Mas também, ampará-los quando o comportamento deste for inadmissível para os padrões jurídicos existentes. Todavia, sem a pena padrão de encarceramento comumente adotada no Brasil e que já se provou ser, do modo como aplicada, falha na recuperação de qualquer indivíduo. Se a mesma é ineficaz quanto aos indivíduos adultos, considerados já conhecedores das regras sociais, pior é seu efeito sobre um ser humano em desenvolvimento moral, físico e psicológico. A questão real é a ineficácia completa de tais medidas. E de nada adianta à sociedade um instrumento jurídico mal aplicado ou impróprio para o tipo de evolução por ela pretendida, mais humanitária.

 

Aqui se insere a proposta da justiça restaurativa. De acordo com o site Justiça para o século 21:

 

“A Justiça Restaurativa é um novo modelo de Justiça voltado para as relações prejudicadas por situações de violência. Valoriza a autonomia e o diálogo, criando oportunidades para que as pessoas envolvidas no conflito (autor e receptor do fato, familiares e comunidade) possam conversar e entender a causa real do conflito, a fim de restaurar a harmonia e o equilíbrio entre todos.

(...)

O principal objetivo do procedimento restaurativo é o de conectar pessoas além dos rótulos de vítima, ofensor e testemunha; desenvolvendo ações construtivas que beneficiem a todos. Sua abordagem tem o foco nas necessidades determinantes e emergentes do conflito, de forma a aproximar e co-responsabilizar todos os participantes, com um plano de ações que visa restaurar laços sociais, compensar danos e gerar compromissos futuros mais harmônicos.” (Disponível em: www.justica21.org.br/interno.php?ativo=DOC&sub_ativo=jr_o_quehttps://www.justica21.org.br/interno.php?ativo=DOC&sub_ativo=jr_o_que)

 

Ao falarmos de responsabilidade parental também queremos apontar para a necessidade desses responsáveis pelos menores compreenderem uma nova metodologia de solucionar conflitos. Isto significa atribuir responsabilidade ao menor por seus atos, mas sem destituí-lo de sua situação de dignidade ao fazer isso. Assim como a mediação tem sido um rico recurso entre adultos, é possível também mediar relações desafiadoras ocorridas entre o menor e sua família, em alguns casos. Naturalmente, sabemos que alguns conflitos não são mediáveis, como as situações de abuso sexual, agressões psicológicas constantes, dentre outras. Mas existem muitos casos em que é possível RESTAURAR os vínculos familiares. E é preciso investir nessa modalidade, uma vez que o nível de violência hoje presente em nossa sociedade há muito ultrapassou o que seria “suportável”. Se cada um compreender seu papel como parte de um núcleo familiar, célula fundamental da vida social, sabendo respeitar o espaço do outro, sua individualidade e dignidade, também irá compreender como a responsabilização é necessária, assumindo os próprios erros e deixando de fazer do sistema judiciário um lugar de “acerto de contas” ou “transferência de responsabilidades por meio da defesa processual”.

 

A justiça restaurativa já tem produzido resultados muito positivos em diversas áreas. O desafio da solução de conflitos envolvendo menores decorre do fato de que os responsáveis por estes muitas vezes se opõem a qualquer diálogo sobre o delito seja por vergonha, seja para evitar sua responsabilização no cuidado e educação com a criança ou adolescente. A vantagem da justiça restaurativa estaria, então, nesse processo de resolução dos casos sem a necessidade de “culpar” ou “julgar” os responsáveis, trabalhando a ideia de “responsabilidade” de modo distinto da ideia de “culpabilização”. É preciso, então, desenvolvê-la mais, educar nossa sociedade para a prática da cidadania da alteridade, aquela em que cada cidadão reconhece os seus direitos e também os que pertencem aos demais cidadãos, sabe que pode exigir, mas também deve assumir responsabilidades. E essa cidadania da alteridade será possível apenas se cada um contribuir, a partir de valores éticos, para a solução pacífica de conflitos. Sabemos que sempre haverá pessoas pouco dispostas a isso, mas quanto mais vínculos sociais forem restaurados, menor o número de demandas litigiosas nos tribunais e, com certeza, todo o Brasil terá uma convivência mais harmônica e justa, mesmo que com imperfeições comuns ao nosso cotidiano.

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