Justiça Transicional (MARTINS, Érika Gomes Vilas Boas)

11/07/2011 11:01

 

Na contemporaneidade as diferentes concepções de justiça de transição procuram mediar dilemas diretamente envolvidos ao papel do direito na transição política radical. Na história recente, os julgamentos de Nuremberg permanecem como marco da derrota nazista na Segunda Guerra Mundial e já na década de 90 do último século, finda a Guerra Fria, a onda de transições de regimes não-democráticos, na América Latina, Leste Europeu e África, revigoraram o debate acerca da necessidade de punir no âmbito nacional as violações aos direitos humanos. Neste contexto, o direito deve garantir não apenas a justiça, mas também a ordem e a conciliação (1). A instauração de dois tribunais internacionais ah hoc para julgar crimes internacionais cometidos na ex-Iugoslávia e Ruanda, e a criação do Tribunal Penal Internacional revigoraram o debate pós-Nuremberg, estabelecendo novos precedentes no âmbito internacional. Segundo Ruti Teitel, o debate referente à justiça penal de transição é marcado por profundos dilemas: Punir ou anistiar? Quem deve ser responsabilizado pela repressão do passado? Em que medida a atribuição de responsabilidade é adequada ao indivíduo, em oposição ao coletivo, ao regime, e mesmo à sociedade como um todo(2)?

 

Além das mudanças para alcançar plenamente o regime democrático, esses países enfrentam desafios principalmente no que concerne ao desenvolvimento de novas políticas para tratar de assuntos acerca da reconstrução moral da sociedade, que se viu afetada pelo desrespeito aos princípios básicos da dignidade da pessoa humana. Sob a ótica da participação ativa dos cidadãos, percebemos que a democracia, como instituição de defesa das liberdades e como regime político da maioria atrelado aos direitos das minorias, não é um valor natural do fenômeno da política. Trata-se de um fenômeno social, histórico, temporal e mutante que se mantêm em construção cotidiana agregando a participação de todos. Dessa forma, a disseminação dos valores democráticos é tarefa que deve permear as políticas públicas de todos os governos. A justiça de transição é normalmente identificada como a principal resposta a crimes sistemáticos perpetrados por regimes ditatoriais. Tal concepção de justiça de transição, entretanto, revela apenas uma face das diferentes respostas possíveis, de maneira que o papel do Direito em períodos de mudança política pode ser explorado a partir das várias formas de ação: punição, investigação histórica, reparações e constitucionalização.

 

Os governos, em especial na America Latina e na Europa Oriental, adotaram muitos enfoques distintos para a justiça transicional. Entre elas figuram as seguintes iniciativas:

 

a) Aplicação do sistema de justiça na apuração dos crimes ocorridos nas ditaduras, principalmente, aqueles considerados como crimes de lesa-humanidade;

 

b) Criação de Comissões de Verdade e Reparação, que são os principias instrumentos de investigação e informação sobre os abusos cometidos em períodos do passado recente;

 

c) Programas de reparação com iniciativas patrocinadas pelo Estado que ajudam na reparação material e moral dos danos causados, que em geral envolvem não somente indenizações econômicas, mas também gestos simbólicos às vitimas como pedidos de desculpas oficiais.

 

d) Reformas dos sistemas de segurança com esforços que buscam transformar as forças armadas, a polícia, o poder judiciário e as relacionadas com outras instituições estatais de repressão e corrupção em instrumentos de serviço público e integridade.

 

e) Políticas de memória vinculadas a uma intervenção educativa voltada para os direitos humanos, bem como práticas institucionais que implementem memoriais e outros espaços públicos capazes de buscar novos significados para a história do país e aumentar a consciência moral sobre o abuso do passado, com o fim de construir e consolidar a idéia da “não-repetição”. Neste sentido a história do passado não é apenas uma. Surgem várias vozes para explicar o que ocorreu. A verdade vai surgir à medida que essas vozes são ouvidas e se pode construir um amplo espectro de versões que vão dando forma aos fatos. É a construção não só da verdade, mas também da memória coletiva, que pode servir para aguçar ou acalmar as diferenças entre as diversas facções sociais. A reprovação moral de toda a sociedade é o primeiro passo para o recomeço.

 

Assim, estas práticas podem oferecer uma maneira tanto de deslegitimar o regime político do passado, quanto legitimar seu sucessor ao estruturar a oposição política dentro da ordem democrática. De acordo com Ruti Teitel, há ao menos cinco concepções de justiça associadas à justiça de transição: a justiça penal, a justiça histórica, a justiça reparatória, a justiça administrativa e a justiça constitucional de transição (3). Enquanto a justiça criminal e a justiça reparatória são consideradas as principais expressões da justiça de transição, a investigação histórica e a narrativa desempenham papel importante na transição, ligando o passado ao presente. Recortes transicionais são incorporados ao legado repressivo do Estado, e este traça uma linha que tanto redefine o passado quanto reconstrói a identidade política do Estado. A justiça histórica de transição ilumina a relação construtiva entre diferentes regimes políticos, possibilitando uma relação dinâmica de conhecimento para o poder político. A justiça histórica pode ser alcançada através de "Comissões de Verdade", as quais muitas vezes clamam pela realização da justiça criminal de transição. Além disso, os precedentes jurisprudenciais também se transformam em documentos históricos que revelam as injustiças cometidas pelo regime repressivo.

 

Sendo assim, justiça transicional é uma resposta concreta às violações sistemáticas ou generalizadas aos direitos humanos. Seu objetivo é o reconhecimento das vítimas e a promoção de possibilidades de reconciliação e consolidação democrática. A justiça transicional não é uma forma especial de justiça, mas uma justiça de caráter restaurativo, na qual as sociedades transformam a si mesmas depois de um período de violação generalizada dos direitos humanos. Diante disso, uma das maiores preocupações do Estado sucessor é provar, perante a sociedade, que os violadores que cometeram essas atrocidades no passado serão de alguma forma punidas e lhes assegurar que essas violações não irão acontecer novamente através da prevenção de futuras violações contra os Direitos Humanos. A importância de se discutir a justiça transicional é que essa se constitui uma forma de justiça alternativa que foge da prerrogativa tradicional, em que o Estado é responsável por investigar e condenar os culpados, pois nesses casos o Estado normalmente ‘e o maior violador.

 

Sendo assim, buscam-se formas diferentes de investigar e condenar aqueles que cometeram algum erro no passado. Este processo de julgamento leva em consideração o consenso da sociedade, o conhecimento público a respeito do passado produzido através de um processo de representação envolvendo os violadores, as vítimas e a sociedade, construindo a investigação histórica com base no consenso popular. As normas, por si só, não constroem a justiça. O que precisa ser feito é cultivar a virtude, que depende de educação e vontade política. A concretização de Justiça impõe a cada um a participação ativa na construção da sociedade, que se traduz, no plano político, na elaboração das leis. Uma ordem justa tem início, quando a ordem jurídica tem origem na vontade popular. Assim, provavelmente conseguiremos a tão esperada democracia para a construção de uma sociedade mais justa.

 

(Excertos da monografia de fim de curso.)

 
 
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1) Teitel, Ruti. Transitional Justice. Oxford University Press. 2000 p. 191.

2) Hayner, Priscilla. Fifteen Truth Commissions - 1974-1994: A Comparative Study. Vol.16 Human Rights Quarterly, 597 (1994) 598-655.

3) Teitel, Ruti. Transitional Justice. Oxford University Press. 2000 p. 6.

 

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