Movimentos sociais e cidadania no contexto neoliberal

28/05/2011 10:18

O doloroso processo de redemocratização vivido entre as décadas de 1970 e 1980 no Brasil tornou a participação popular um elemento imprescindível para a composição de um novo cenário político e jurídico. O engajamento popular, aliás, é apoiado pela Constituição Cidadã de 1988. Esse momento histórico coincidiu com o declínio do Welfare State devido, entre outros motivos históricos, à sua incapacidade de continuar a oferecer os benefícios sociais de outrora. A crise do petróleo, afetando o mercado mundial, foi cumulada, no Brasil, pelos desvios do chamado "milagre econômico". Os anos de 1980 se iniciaram com alta inflação, juros cumulativos e a ressaca devida à má gestão no Estado. Sobrecarregado, o Welfare State reduz seu tamanho através de cortes profundos que se concentraram, infelizmente, nas áreas sociais. Ganhando força nesse momento histórico, o "direito neoliberal" adota como corolário de uma série de princípios novos o que Bester aponta como a reserva do possível. Ante a impossibilidade de gerir a estrutura estatal nos moldes de um capitalismo social, o Estado está autorizado, em princípio, a eximir-se do seu poder-dever de suprir o bem comum em algumas situações concretas.

 

A Lei de Responsabilidade Fiscal, que limite os gastos dos setores públicos com contratação de pessoal, entre outras determinações, é um exemplo dessa nova postura neoliberalista para promover seus três objetivos principais. O primeiro deles é a sobrevivência em um mundo tecnologicamente interligado e financeiramente globalizado, no qual os menores fatos ocorridos em um país podem desequilibrar as relações entre muitos outros (efeito borboleta). O "efeito borboleta" recebeu este nome pelos autores da teoria do caos devido a dois fatores: 1- em 1972, Eduard Norton Lorenz apresenta um artigo científico no qual defende a idéia, testada em seu computador, de que pequenas variações no sistema, de modo global, podem a médio ou longo prazo produzirem discrepâncias relevantes pelo seu acúmulo ou pelo desencadeamento de uma série de fatores interligados; 2 - o gráfico utilizado por Lorenz para demonstrar o funcionamento de um sistema sob tais previsões possuía a forma aparente das asas de uma borboleta.

 

O segundo consiste em focalizar gastos, sem que tal medida comprometa a qualidade dos serviços públicos essenciais. O terceiro, ampliar os níveis de democracia dentro do Estado, propiciando uma experiência democrática ampla, inclusiva para aqueles mais distantes do centro social das decisões coletivas. A partir de então, há a descentralização constante de atividades públicas, com a simultânea atribuição de responsabilidades à sociedade civil na consecução do bem comum, v.g., Associação dos catadores de papel, papelão e materiais reaproveitáveis de Belo Horizonte (ASMARE), "Rede de amigos da Bacia do Rio das Velhas" (realizam monitoramento ambiental participativo), Movimento Moradia Paulista Leste (MOMPA), "Novos Curupiras" (Cultura, educação e meio ambiente, Ilha de Marajó-PA) Central Única de Favelas (CUFA, Rio de Janeiro), "Amigos do Hospital Mário Penna", bancos de micro-crédito e orçamento participativo. A complexização da vida social faz com a legitimidade estatal passe a ser mais constantemente questionada, uma vez que as pessoas já não aceitam mais serem “padronizadas” nem ter seus interesses submetidos a uma agenda legislativa pouco debatida com a sociedade civil. Por isso se pode dizer, de modo simples, é claro, que os movimentos sociais serão identificados como a parcela da sociedade civil, representando um momento de sua atuação, no sentido de reivindicar do Estado os direitos pactuados que estariam sendo descumpridos; outras vezes, para incluir novos direitos no “contrato social”. Seriam, então, modos de articulação da sociedade civil para empreender mudanças sociais no contexto vigente e, desse modo, propiciar a inclusão de novos sujeitos como cidadãos. São os principais agentes de transformação das relações atuais com o poder público. Como define Alexander:

 

"O termo movimentos sociais diz respeito aos processos não institucionalizados e aos grupos que os desencadeiam, às lutas políticas, às organizações e discursos dos líderes e seguidores que se formaram com a finalidade de mudar, de modo freqüentemente radical, a distribuição vigente das recompensas e sanções sociais, as formas de interação individual e os grandes ideais culturais. (...) Os movimentos sociais foram identificados segundo o modelo dos movimentos revolucionários, entendidos como mobilizações de massa que visam apossar-se do poder de um Estado antagônico. De acordo com essa concepção, o objetivo dos revolucionários é substituir uma forma opressora de poder estatal por outra voltada para um fim distinto, mas que se utiliza de meios semelhantes.”

 

No caso brasileiro, tivemos a seguinte evolução histórica (resumidamente):

  

PERÍODO

(APROX.)

MOVIMENTOS SOCIAIS

CARACTERÍSTICAS DOS MOVIMENTOS

1955-1964

CAMPESINO, OPERÁRIO, ESTUDANTIL, DE FAVELAS E GRUPOS PROGRESSISTAS DA IGREJA CATÓLICA

IMPACTO DA REVOLUÇÃO CUBANA; ORGANIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS; LUTA POR CONDIÇÕES DE VIDA MELHORES

1964-1975

CAMPESINO, OPERÁRIO, ESTUDANTIL, DE FAVELAS, GRUPOS PROGRESSISTAS DA IGREJA CATÓLICA

LUTA CONTRA A DITADURA E OPOSIÇÃO AOS SETORES TRADICIONAIS DA SOCIEDADE (RELIGIOSOS OU NÃO)

1975-1985

ANTERIORES; ASSOCIAÇÕES DE “AMIGOS DO BAIRRO”

LUTA CONTRA A DITADURA; AUMENTA A ORGANIZAÇÃO LOCAL/MUNICIPAL

1988 - ...

ANTERIORES, “AMIGOS DO BAIRRO”, ÉTICA E POLÍTICA, LUTA ANTI-MANICOMIAL, ONG, ETC

REDEMOCRATIZAÇÃO; NOVOS VÍNCULOS DA SOCIEDADE CIVIL COM O ESTADO; INTERESSES GLOBALIZADOS

 

 

Os movimentos sociais globalizados ou globalizantes do período contemporâneo evidenciam exemplarmente essa articulação e como distintos espaços-tempo se imbricam enquanto dimensões de distintos sistemas sociais. Experiências locais, por um lado, tem se expandido com rapidez para outros lugares e culturas e, por outro, o envolvimento dos ativistas moralmente mobilizados cresce à medida que sua participação é facilitada pelas novas mídias, como o flash mob via Twitter. Estes são aspectos decisivos para o sucesso de tais movimentos hoje. Ademais, eles somente decolam, no plano global, se logram, na longa duração de sua mobilização, atingir uma "linguagem" mais universal para articular politicamente seus problemas. Essa conjunção de fatores faz da constituição de movimentos sociais transnacionais ou globais uma tarefa difícil, mas não impossível. Como diz Tarrow:

 

"[...] identidades encaixadas em relações da vida cotidiana são com freqüência a base de agregação em movimentos sociais, e isto é um óbvio obstáculo à construção de movimentos através de fronteiras nacionais. A tarefa de criar identidades que 'viajarão' é difícil mas não intrinsecamente impossível, como o exemplo do islã fundamentalista militante mostra".

 

Como afirma Domingues, uma dupla direção deve ser seguida para que tal movimento seja viável: manter seus círculos locais permanentes na vida cotidiana, na qual emergem e atuam seus militantes, e construir pontes com outros contextos, no caso, globais. Essas pontes têm sido de fundamental importância, pois criam uma rede internacional de suporte para os movimentos locais, regra geral, mais fracos e com menos recursos do que o poder público. No contexto neoliberal eles assumem, por vezes, papéis originariamente atribuídos ao Estado, especialmente quando se trata do reconhecimento de direitos fundamentais já assegurados ou de direitos novos que se quer pleitear. Mas, como a concessão de direitos, com vistas à cidadania, tem sido realizada sem o estabelecimento de um diálogo efetivo entre Estado e sociedade civil, amplamente considerada, os projetos implementados terminam por serem insuficientes para suprir as necessidades básicas dos seus cidadãos.

 

Por exemplo, cita-se a criação dos Centros de Integração da Cidadania, em São Paulo, que segue a linha internacional dos projetos que visam fazer cumprir a Declaração Universal dos Direitos Humanos nos países em desenvolvimento. Inicialmente, o que se pretendia era organizar a comunidade, aqui como parte da sociedade civil, para elaboração de práticas de solução de conflitos e assessoria para o planejamento de ações de melhoria da vida local. A proposta incluía descentralização de poder, recursos para investimentos em políticas sociais e facilitação do acesso a serviços públicos essenciais, em geral distantes das populações de baixa renda. À medida que o projeto foi sendo implementado, esta perspectiva se alterou, e o poder público passou a direcionar as ações e investimentos em atividades que visassem diminuir a violência. A justificativa para essa postura do Estado se encontrava na pressuposição de que os ataques à cidade cometidos pelos jovens dessas comunidades – aqui sociedade civil são as vítimas dos assaltos, furtos e outros crimes – precisavam ser contidos e, por isso, a gestão do projeto migrou da Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania para o Plano de Integração e Acompanhamento dos Programas Sociais de Prevenção da Violência (Piaps), do governo federal: "A educação ou a justiça passam a ser justificadas, não como direitos fundamentais, mas como estratégias de controle do crime" (Haddad).

 

Vimos no caso acima, como o conceito de sociedade civil se diferencia , conforme a postura política e social adotada pelo Estado. No momento em que a segurança pública dos "cidadãos" se tornou imprescindível para o poder público, restringiu-se, ainda que não explicitamente, a extensão do termo sociedade civil. Naquele momento de construção de normas da vida moral e, em seguida, de normas jurídicas que regessem os fatos sociais contemplados, a comunidade – espaço social dos moradores de baixa renda, no caso – teve que se submeter a uma nova proposta de intervenção estatal cujo intuito era adequar o comportamento dos seus moradores para não causar danos à sociedade civil. Em seu estudo sobre a migração de trabalhadores para a favela do bairro Lagoinha, em Uberlândia, Rosângela Petuba também descreve essa dicotomia no modo como se vê a sociedade civil e explica-a através dos termos marginalidade e integração. Para o Estado, aqueles que não se adequam ao paradigma criado pelo direito estatal, estão na "marginalidade", pois se recusam a interagir com o modelo oficialmente determinado. Petuba também ressaltar esse caráter inovador, com outras palavras, explicando como os migrantes são esquecidos como parte dos que constroem a sociedade. Uma vez que sua história acontece às margens da "história oficial", seus relatos não fazem parte da pauta de discussão política. Eles não fazem parte da sociedade civil de Uberlândia.

 

Conclui-se que há, na verdade, dois conceitos de sociedade civil em vigor, hoje, no Brasil. Um formulado pelo Estado, no qual ela consiste em uma estrutura da vida privada, com a qual mantém relações políticas de representatividade e de cidadania. A sociedade civil, sob o foco do poder estatal, representa o espaço privado da vida social, que interage com o poder instituído através de mecanismos legítimos e na qual todos são cidadãos.  Outra sociedade é aquela em que indivíduos considerados uma ameaça à ordem instituída são destituídos de mecanismos de ação para que possam confrontar a postura assumida pelo Estado em relação a eles. Nesta, há a maior perversidade do direito neoliberal, pois a falta de acesso a recursos públicos, em geral somente distribuídos entre os cidadãos legítimos e que se comportam conforme o esperado, faz com que maior sejas as dificuldades desses grupos ou movimentos sociais para lutarem por direitos e serem “ouvidos”. Em um contexto como esse, maior é a responsabilidade dos juristas com a implementação de um direito inclusivo e bem aplicado, que garanta o reconhecimento destes sujeitos excluídos no acesso à sua posição de cidadãos.

 

 

Referências

 

ALEXANDER, Jeffrey. Ação coletiva, cultura e sociedade. In: Rev. Bras. de Ciências Sociais, v.13, n.37, São Paulo, Jun. 1998, p.1.

BESTER, Gisela Maria. Direito Constitucional – Fundamentos teóricos. São Paulo: Manole, 2005.

DOMINGUES, José Maurício. Vida cotidiana, história e movimentos sociais. Dados. 2003, vol. 46, no. 3, pp. 461-490.

HADDAD, E. G. M.; SINHORETTO, J. Centros de Integração da Cidadania: democratização do sistema de justiça ou o controle da periferia?. São Paulo em Perspectiva,  São Paulo,  v. 18,  n. 1,  2004.

PETUBA, R. A cidade em movimento: experiência dos trabalhadores migrantes nas favelas do anel viário e do bairro Lagoinha em Uberlândia (1990-1997). Revista de História Regional, v. 7, n. 2, p. 51-74, inverno de 2002. 

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