O direito ao direito

25/04/2011 12:38

"Em vez de serem apenas livres,

esforcem-se para criar um estado de coisas

que liberte a todos"  Bertold Brecht  

 

 

Atualmente, mesmo após os longos anos de luta para que os direitos fundamentais fossem incorporados ao texto constitucional e o vintenário da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR/88) ainda existem subcidadãos em nosso país para os quais a concreção das normas jurídicas é uma mera expectativa. Esses subcidadãos, parte importante da sociedade civil, muitas vezes reconhecem a si mesmos como titulares de direitos fundamentais que o Estado deva respeitar e, também, como atores sociais que devam participar efetivamente do processo de tomada de decisões políticas por meio dos instrumentos legais previstos no ordenamento jurídico. Conquanto ainda persistam falhas no acesso efetivo a diversos direitos fundamentais, a cidadania democrática é mais ativa do que a cidadania liberal tradicional, posto que se funda sobre a emancipação da sociedade civil, já não mais meramente receptora de concessões sempre definidas segundo um modelo estatal “standard”, mas sujeito proativo de sua autonomização, mesmo que tal processo seja conflituoso e fronteiriço ao direito posto.  

 

Os conflitos surgem, atualmente, quando os instrumentos legalmente previstos não permitem tal emancipação, limitando a ação dos subcidadãos, os quais passam a criar meios alternativos para que possam alcançar esses direitos. Por isso se fala em “zonas de fronteira” entre o interesse público e o privado (enquanto “particular”), entre o estatal e o extraestatal, entre os sujeitos legais e os sujeitos “legítimos”, nem sempre reconhecidos pelo direito positivo disposto nas legislações dos Estados. O formato de Estado Democrático assumido pelo governo brasileiro após a redemocratização, notadamente após a década de 1990, na chamada “era dos conselhos”, tentou fazer com que todos os cidadãos pudessem participar de sua composição: Conselho Municipal de Defesa Social, Conselho Tutelar, Conselho Municipal de Saúde, Conselho Municipal de Educação, etc. Também participaram por meio das diversas formas associativas assumidas pelas comunidades carentes e movimentos sociais nos anos posteriores à promulgação da atual Carta Constitucional brasileira, demandantes da efetivação do texto magno, que assegurou muitos direitos fundamentais antes olvidados e disponibilizou instrumentos para sua consecução: ação civil pública, iniciativa popular, entre outros.

 

Mas esses sujeitos enfrentam, ainda, dificuldades concretas de acesso a estes mecanismos no seu dia a dia, e por isso têm “criado” alternativas “paralegais”, às vezes incorporadas pelo Estado (por exemplo, o programa de promotoras legais populares), em outros momentos, confrontando-se com o “legal”, como no caso de alguns conflitos entre movimentos de luta pela terra, fazendeiros e Estado (no caso das lutas ocorridas no Pontal do Paranapanema, tanto sem-terras quanto fazendeiros estavam, na maioria dos casos, agindo de forma irregular, pois muitas supostas “propriedades”, na verdade, eram terras devolutas, impassíveis de usucapião, e invadidas pelos atuais “fazendeiros” há cerca de vinte anos atrás). Portanto, essas situações de conflito entre a expectativa de direito (e de democracia) e o plano real ensejam a necessidade de novas formas de reconhecimento que regulem a convivência entre Estado e os subcidadãos, de modo que a existência de um arcabouço jurídico partilhado entre esses sujeitos possa viabilizar uma realidade que nos assegure a continuidade do que chamamos de “bem comum” em nossa sociedade.  


É certo que, em uma hermenêutica austiniana, o direito ao direito é mera pretensão, não configurando “direito” per si, como aqueles oriundos da lei e de outras normas positivadas (por exemplo: resoluções, decretos, portarias, etc.). Sua significação é mais restrita do que aquela defendida pelas diversas vertentes críticas do direito positivo, algumas mais elásticas do que outras, ao longo do século XX: teoria crítica propriamente dita (Escola de Frankfurt), teoria da integridade da norma, ponderação de princípios, direito reflexivo, direito responsivo, realismo jurídico, pluralismo jurídico, direito alternativo, entre outras. Essas correntes afirmam a natureza de “direito” que possuiriam tais pretensões, por vezes atribuindo-lhes também “juridicidade”, como no caso das três últimas citadas. O atendimento às necessidades visto como “direito” também é uma defesa feita por Gustin através do trabalho de extensão do Grupo Pólos de Cidadania, da Universidade Federal de Minas Gerais, atuando com regularização fundiária, mediação nas vilas e favelas, intermediando o reconhecimento de demandas das comunidades pelos órgãos públicos, etc. Em uma análise positivista tradicional, o que o Grupo Pólos faz seria considerado meramente atuação política ou social, não jurídica. Não seria, assim, da alçada do “direito”. O suporte oferecido por advogados de direitos humanos a moradores sem-teto que invadiram edificações desabitadas também não seria reconhecido como “direito”, mas como pretensão política à inclusão, o que deslocaria seu debate da seara jurídica para o campo de ação do Poder Público (em geral identificado com o Poder Executivo) e das Comissões do Poder Legislativo.

 

Para os que pensam assim, o direito é o instrumento de atuação do Estado junto à sociedade que o constituiu por meio de órgãos especializados, dotados de profissionais qualificados, os técnicos, e que somente agem conforme a autorização normativa (legal) recebida desse mesmo Estado. Está correto; mas incompleto. A neutralidade do campo jurídico é necessária, buscada, mas não impassível de influências. E, nesse sentido, o argumento de que a lei é imprescindível “exatamente” para evitar tais influências é, no mínimo, ingênuo. Por que a lei não é elaborada por um processo neutro. Há violência no processo que escolhe os que elaborarão as leis; também ao longo do processo legislativo que as constrói. Quantos embates já ocorreram nos parlamentos, o brasileiro inclusive, para decidir uma única palavra que comporia o texto, devido aos significados que tal mudança ensejaria no momento da aplicação da norma jurídica. E, o sistema representativo dos interesses dos cidadãos em que tais embates acontecem asseguram, por exemplo, que determinados sujeitos decidam, ao final, a palavra que será usada. Há regras sobre quem tem maioria, e, assim, sobre quem decide, quem fala, quem coordena atividades no Poder Legislativo. A disputa de cargos e presidências de Comissões ocorre em razão da vontade de usufruir desse lugar de poder no órgão que cria as leis e, destarte, decide o que é o “direito” (de quem, para quem, condições de sua concessão, etc.).

 

Se lançarmos essa discussão somente no campo político, estaremos afirmando a função estrita do ordenamento enquanto instrumento de controle social institucionalmente estabelecido e aplicado. Por outro lado, se pudermos reconhecer a legitimidade de uma discussão jurídica sobre tais questões ora apresentadas, estaremos considerando o “direito” mais do que como instrumento, função que realmente exerce, mas também como normatividade, como propõe Friederich Müller. Somente esta forma de pensamento sobre o direito permitiria falar em um “direito ao direito” e em uma “crítica da violência do Estado”, porque esse direito e essa crítica residem fora do ordenamento institucionalmente criado por meios dos órgãos estatais. É ela que permite existir oposição à legitimidade dos Atos Institucionais promulgados durante o período ditatorial brasileiro. O “direito”, a seguir-se este caminho, estaria além da sua instrumentalidade institucional, o que implica na afirmação de que a qualidade da norma não coincide com a sua literalidade, exigindo do jurista uma posição hermenêutica menos restrita, que Müller denomina como um direito constitucional consuetudinário. Em uma leitura a partir das vertentes críticas, essa normatividade praeter constitutionem é que permite o reconhecimento de “direitos” pela sociedade civil, ainda que nem sempre o sejam pela autoridade política do Estado. E, em um Estado Democrático de Direito, ela é que assegura uma cidadania efetiva aos cidadãos, que pode ser pleiteada enquanto “direito ao direito”.

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