O discurso e a retórica

17/03/2011 14:54

Há muito se reflete no direito e no ensino, de modo geral, sobre os diferentes discursos que orientam a prática diária e a vivência dos indivíduos. Tanto na vida profissional quanto na acadêmica, os discursos variam e assumem posição nada neutra, especialmente quando confrontados com interesses diferentes dos seus enunciadores. Pierre Bourdieu, em seu texto “Os doxósofos”, retrata a partir da vida política na França o quanto é real a superposição do discurso dominante sobre o restante das pessoas, impedindo-as de expressar livremente a respeito dos temas que tocam sua realidade. Como isso ocorre nas disputas eleitorais, também acontece nas disputas por investimentos em pesquisa, bolsas de estudo, postos de relevo nas instituições jurídicas e de ensino. E quem obtiver maior extensão para sua influência - Bourdieu faz também brilhante análise a respeito dos "campos de poder" - imporá, por certo, o padrão do "correto" a ser seguido pelos demais. Quem discordar, contente-se em não ter abertas para si as portas de alguns lugares. Aqui, concordo com Nietzsche, filósofo que admiro, por sua crítica à filosofia grega - culta e fundamental para formar a racionalidade humana, fato que o pensador alemão jamais negou - no sentido de que o desenvolvimento do "bem falar", a retórica, corrompeu o conteúdo dos discursos. 

 

“Nietzsche oferece séria crítica à Sócrates ao apontar a retórica como uma linguagem enganadora, longe dos primórdios, pois como arte de convencer não se preocupa em dizer a verdade. Ao contrário, a retórica se dedica ao encobrimento do real. A palavra, em virtude disto, serve apenas aos interesses daqueles que, ocupando o poder, pronunciam seu discurso em detrimento dos demais.  Rousseau, como se verá mais a frente, faz a mesma crítica à sociedade francesa de sua época ao recordar os dias de “magnificência e brilho” de Roma e Atenas, tempo em que as artes tornavam a convivência amável, deixando ao Governo e à política os cuidados com a segurança e com o bem-estar do povo (ROUSSEAU, 1973. p. 342-343). No seu Ensaio, o autor acusa o uso da retórica pelos políticos como instrumento de manipulação dos cidadãos e uma deturpação completa da palavra. (...)  

 

No tocante ao tema da decadência das virtudes na sociedade, em consequência da música moderna, Bento Prado Jr. nos aponta as posições de Rousseau e Nietzsche. O primeiro atribui tal ocorrência às astúcias da linguagem, ao uso que dela fazem os governos para fundamentar as decisões políticas. Para o segundo resulta da visão escrava dos homens, pela rejeição da potência da vida. Mas tanto um quanto outro vêem na retórica o significado de astúcia. Em Nietzsche, ela representa uma metáfora das coisas, segundo uma convenção estabelecida e que se deseja manter para submeter o rebanho (FONSECA, p. 98). A retórica é o meio formal para persuadir e não corresponde à verdade real, mas a verdade convencionada, e, segundo Rousseau, é utilizada pelo Estado para submeter os indivíduos. A escrita, embora sua redação se faça por meio da técnica, consiste em retórica, pois ela serve para encobrir esta verdade ao expurgar do indivíduo a força de sua voz, tornando-a inexpressiva (PRADO JR., 1998. p. 71).” (SOUZA, 2010)

 

Não é exagero, então, precuparmo-nos com a retórica nos discursos do ensino jurídico. Afinal, corre-se o risco, sem o devido cuidado, de que questões centrais para sua melhoria sejam olvidadas em razão de "querelas". O número de publicações é fundamental; a pesquisa é essencial. Mas em alguns casos, não poderia a retórica da "qualidade" expurgar da concorrência em tais segmentos as ideias divergentes pelo puro medo do "novo"? Não se tornaria o discurso científico, in casu, um mero discurso de poder que seria utilizado para "abrir" e "fechar" portas a pesquisadores e docentes, "permitir" ou "negar" espaço a publicações fora do discruso padrão? O que se veria seria a seleção não em virtude do mérito, mas da "cordialidade", no sentido que Sérgio Buarque de Holanda descreve em "Raízes do Brasil": nepotista, protecionista e repleta de valores e interesses pessoais que comprometeriam o valor maior da EDUCAÇÃO. É preciso muito cuidado com a adesão a um discurso ou outro; a retórica pode justificar qualquer absurdo quando bem enunciada. Odorico Paraguaçu era, ainda que ficcionalmente (embora a ficção imite a vida real em muitos aspectos), um grande orador.

 

 

Referências

 

FONSECA, Thelma Lessa da. Nietzsche: crítica à linguagem como crítica à moral. In: Revista Discurso, n. 25, 1995, p. 97-119.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Tratados filosóficos. In: Obras completas de Federico Nietzsche. Traducción, introducción y notas de Eduardo Ovejero y Maury. Buenos Aires, Argentina: Aguilar, 1957.

PRADO JR., Bento. A força da voz e a violência das coisas. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Campinas: UNICAMP, 1998.

ROSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre as ciências e as artes. In: Rousseau. Porto Alegre: Globo, 1973. Coleção Os Pensadores. v. XXIV. p. 341-360.

ROSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas – em que se fala da melodia e da imitação musical. Apresentação: Bento Prado Júnior. Tradução: Fulvia M. L. Moretto. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998.

SOUZA, Luciana Cristina de. A música na modernidade: uma reflexão sobre as idéias de Nietzsche, Weber e Rousseau. Revista Olhar (UFSCar), v.21, p.273 - 298, 2009.  

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