O conceito de "cidadão" a partir dos contos de Rubem Braga e Moacyr Scliar

17/10/2010 13:41

A literatura revela o Brasil. Grande Sertão Veredas (Guimarães Rosa), Capitães de Areia (Jorge Amado), Ana Terra (Érico Veríssimo), Agosto (Rubem Fonseca), O Xangô de Baker Street (Jô Soares), Belini e a Esfinge (Toni Beloto) exemplificam como a leitura literária nos faz conhecer os diferentes brasis existentes. Por meio dessas narrativas redescobrimos o Brasil real. O cenário de cada época, suas personagens, a trama da estória ou história – quase sempre misturadas – possuem a capacidade de usar suas muitas metáforas, e outras figuras de linguagem, para ver o concreto através do imaginário, já que aquele se esconde de nós no cotidiano. Prefirimos analisar as ditaduras, os preconceitos, as paixões, os dramas, as traições e outros defeitos tão humanos e corriqueiros como vivências de outrem, situando-as bem distante no tempo ou no espaço, ocultando-as em categorias abstratas como “os revolucionários”, “os estrangeiros”, “meus antepassados”, “o povo daquela época”. Mas quando a narrativa descortina a verdade, reconhecemo-nos, presenciamos nossa própira história na boca desse outro afastado e somos impelidos a, mesmo que internamente, ver nossa vida. Assim ocorre também com o direito, bem acabado em sua estética legislativa, conhecido – de todos? – na sua aparência de legalidade, todavia não raro instrumento simbólico de ocultação do real. Atravessando para o outro lado do espelho, como fez Alice de Lewis Carrol, talvez contemplemos as leis de outra forma, mais crítica e menos crente na fé positivista, sem que isso, de nenhuma maneira, seja um abandono do direito como fundamento da ordem social.

 

A fragmentariedade do século XX e, principalemente do atual, tem deixado perplexos os mais afeitos ao tecnicismo oitocentista, para os quais falar em direito com função social ainda é assunto novo, não obstante as cartas constitucionais brasileiras já o mencionem desde 1934. E se assim tem sido, tal postura explica em parte – e não exclusivamente – porque a compreensão do termo cidadania ainda gera conflitos entre o Estado e a sociedade civil, apesar das muitas políticas de inclusão já promovidas nos últimos vinte anos. O direito desenvolveu instrumentos de coação com o fito de assegurar aos cidadãos a aplicação da norma jurídica sem distinções entre pessoas, e protegendo-as, ainda, dos abusos que porventura o Estado pudesse cometer. Assim, a cidadania decorre tanto do direito de ter direitos, quanto da existência de uma soberania popular cujo poder deveria se equilibrar com a autoridade estatal, impondo-lhe limites. Não somente o Estado poderia restringir a liberdade do indivíduo em prol do pacto, noção bem contratualista e hobbesiana, mas a idéia principal do ideário da França revolucionária e da independência norte-americana consistia na possibilidade de o indivíduo também restringir a atuação estatal, vedando-lhe qualquer onipotência, ainda que supostamente justificada pelo princípio da legalidade. Não há cidadania quando o indivíduo é tutelado pelo governo.

 

O discurso democrático aparece como uma promessa do texto legal dos países que adotaram o Estado de Direito; importante e necessária no contexto dos séculos XVIII e XIX, primou pela formação de um novo e mais eficiente aparato público – órgãos especializados, especialização técnica, sistematização das leis –, porém olvidou a realidade social em que esta estrutura formal seria utilizada. A qualidade acadêmica dos estudos jurídicos tradicionais é uma herança relevante e inegável; sua efetividade nem sempre o é. E propor um ordenamento jurídico fulcrado estritamente na técnica legislativa é, ainda hoje, viver a ilusão do positivismo legalista, no qual a lei se bastaria em si mesma na tarefa de moldar as condutas sociais. Tal é o equívoco de quem ministra o direito, nas palavras de Paolo Grossi, como quem joga um telha sobre a cabeça de um passante (GROSSI, 2006, p. 2). Esquecendo a origem social da norma jurídica, o jurista legalista protege a lei, não o cidadão.

 

Analisando este enfoque se chama a atenção para dois contos importantes da literatura nacional cujo enfoque central é a baixa qualidade da cidadania oferecida aos brasileiros. Estas narrativas possuem em comum, particularmente: a crítica à assistência que o Estado disponibiliza para os menos favorecidos economicamente; a relação entre cidadania-discurso e cidadania-realidade; a morte do cidadão, figurativa e física. Em ambos os contros o indivíduo comum é o protagonista desta tragédia social. Ele luta, sofre, sobrevive e, ao final, morre sem nunca ter visto o direito passar por sua vida, apenas conhecendo os deveres que lhe são continuamente exigidos. Na primeira estória, de Rubem Braga e datada de 1935, a personagem revela um Brasil de Silvas, de joões-niguém em que a cidadania somente é experimentada na morte do indivíduo, quando o Estado se encarrega dele pela primeira vez, para conduzir o corpo ao necrotério. Desse modo pretende a autoridade pública desobstruir a via em que o morto estava deitado “atrapalhando o tráfego”, nas palavras de Chico Buarque em sua música Construção.

 

“A Assistência foi chamada. Veio tinindo. Um homem estava deitado na calçada. Uma poça de sangue. A Assistência voltou vazia. O homem estava morto. O cadáver foi removido para o necrotério. Na seção dos “Fatos Diversos” do Diário de Pernambuco, leio o nome do sujeito: João da Silva. Morava na Rua da Alegria. Morreu de hemoptise. João da Silva — Neste momento em que seu corpo vai baixar à vala comum, nós, seus amigos e seus irmãos, vimos lhe prestar esta homenagem. Nós somos os joões da silva. Moramos principalmente na rua. Nós pertencemos, como você, à família Silva. Não é família ilustre; nós não temos avós na história. Muitos de nós usamos outros nomes, para disfarce.” (BRAGA, 1951, p. 155)

 

Outro aspecto demonstrado no conto de Rubem Braga é a ausência de nome ilustre da personagem. Na verdade, o nome, comenta o autor, nem é importante. Poderia ser Silva ou qualquer outro, já que ser Silva é no texto, aliás, uma condição social que atinge as classes mais pobres, desconhecidas e vilipendiadas pelo poder público, derivando deste fato a desnecessidade de conhecimento sobre o nome real destes indivíduos. Não existem para o sistema vigente e apenas são vistos em situações como a da narrativa apresentada, na morte. João Cabral de Melo Neto, em sua obra Morte e Vida Severina, chega a mostrar pela narrativa a ausência da cidadania até mesmo na hora da morte daqueles que não possuem terra própria. Retornando ao texto de Braga, apesar da época em que foi escrito ser bem distante, cronologicamente, da promulgação da Constituição Cidadã de 1988, observa-se que muitos indivíduos ainda carecem de um tratamento efetivamente justo e eqüanime para se transformarem concretamente em cidadãos, não obstante as contribuições significativas do texto magno mais recente para a inserção de direitos mais humanos e sociais no ordenamento jurídico nacional.

 

No conto de Scliar, o personagem central é um brasileiro comum. Ao longo da narrativa fica o leitor sem conhecer-lhe a identidade, pois não há uma única referência ao seu nome em toda o texto. Este homem fica desempregado e, por causa das semanas seguidas em que sai a procurar emprego sem nada encontrar, envergonha-se perante sua família ao voltar para sua casa mais uma vez sem obter trabalho. Em razão disso, resolve não entrar e sai vagando pelas ruas, distanciando-se de todos aqueles que o conheciam. Com o tempo, desabitua-se da vida que levava, esquece seu nome e passa a viver como tantos outros homens e mulheres nas ruas da cidade. Após longo tempo, esquecido de si mesmo, resolve redescobrir o próprio rosto. Procura um abrigo, toma um banho, recebe comida e roupas limpas e, ao ver-se no espelho após muitos anos encontra uma outra pessoa. Quando sai de novo para as ruas, seu nome é indagado pelo padre do abrigo para registro. Já não se lembra e que importância havia? O pároco é quem lhe atribui o nome de José da Silva, como tantos outros josés que pelo abrigo passavam todos os dia. É a primeira forma de reconhecimento que recebe ao longo da narrativa. A segunda, irônica, acontece logo em seguida:

 

“Ele saiu... Sentia-se como que – embriagado? – sim... pelo céu, pela luz do sol, pelas árvores, pela multidão que enchia as ruas. Tão arrebatado estava que, ao atravessar a avenida, não viu o ônibus. O choque, tremendo, jogou-o à distância... Alguém se inclinou sobre ele, um policial. Que lhe perguntou:  

— Como é que está, cidadão? Dá para agüentar, cidadão?  

Isso ele não sabia. Nem tinha importância. Agora sabia quem era... Não tinha nome, mas tinha título: cidadão. Ser cidadão era, para ele, o começo de tudo. Ou o fim de tudo. Seus olhos se fecharam. Mas seu rosto se abriu num sorriso. O último sorriso do desconhecido, o primeiro sorriso do cidadão.” (SCLIAR apud PINSKY, 2005, p. 588)

 

José e João, ambos “da Silva”, morreram “atrapalhando o tráfego”, como o operário da obra musical de Chico Buarque, “Construção”. Nenhum recebeu assistência do Estado em vida, nenhum foi cidadão enquanto viveu. Por isso, representam aqui o brasileiro comum, aquele cujos recursos econômicos são escassos para o sustento, tornando-o dependente de uma rede de serviços públicos tantas vezes ineficiente e comprometida com a cultura patrimonialista de nosso país. Passaram pela vida sem ver o sistema estatal funcionar em sua plenitude quanto aos seus direitos. Em razão disso, sua trajetória, ainda que situada no passado histórico brasileiro, consegue nos conduzir à reflexão sobre os obstáculos que nossa Constituição Cidadã ainda sofre para alcançar sua concretização, evitando também se tornar uma norma distante de seus destinatários e da realidade em que vivem os milhares de Josés, Joões, Marias, Beatrizes, Silvas, e outros subcidadãos deste país.

 

Quando o Prof. Miguel Reale ministrava em suas aulas que o direito, para ser completo, necessitava atender a três aspectos – fático, axiológico e normativo – explicava através desta teoria a sua essência tridimensional. Sem esta percepção da norma jurídica, transforma-se em um mero resultado da técnica legislativa, sem compromisso firmado com a sociedade a ele submetida. A tridimensionalidade do direito, ensina o ilustre mestre, consiste em também atentar-se para a realidade em que o fenômeno jurídico se produz, o locus vivendi de João e de José. A existência de uma estrutura burocraticamente bem organizada é apenas o primeiro passo, não o único nem o mais importante, para o cidadão acessar o Estado. Os valores destes indivíduos, a concretude de sua vida social hão de estar inseridos no texto legal, sob pena de o termo cidadão converter-se em mais uma das muitas alcunhas cotidianas que nada significam substancialmente, como “e aí, chefe”, “fala, patrão”, “camarada”.

 

 

Referências

 

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2007.

BRAGA, Rubem. Luto da família Silva. In: 50 crônicas escolhidas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 155-157. 

COSTA, Eder Dion de Paula. Povo e cidadania no Estado Democrático de Direito. In: Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 38, 2003. p. 101-121.

DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

DIAZ, Elías. Constitución: realidades y posibilidades. In: Notícia do Direito Brasileiro, n.13, Brasília, 2006, p. 35-58.

GROSSI, Paolo. Primeira lição sobre direito. Trad. Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? – A questão fundamental da democracia. 3ed. Trad. Peter Naumann. São Paulo: Max Limonad, 2003.

PICCOLO, F. D. A gramática nativa: reflexões sobre as categorias morro, rua, comunidade e favela. In: FRÚGOLI JR., H.; ANDRADE, L. T.; PEIXOTO, F. A. . As cidades e seus agentes: práticas e representações. São Paulo: EDUSP, 2006. p. 330-352.

SCLIAR, Moacyr. O nascimento de um cidadão. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (org.). História da cidadania. 2ed. São Paulo: Contexto, 2003. p. 585-588.

SPIRO, Peter J. The impossibility of citizenship. Michigan Law Review, v. 101, n. 6, maio de 2003, p. 1492-1512.

ZIZEK, Slavoj. Bem vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de setembro e datas relacionadas. Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2003, Coleção Estado de Sítio.

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