Necessidade de amparo político e jurídico para o exercício de cidadania

09/05/2011 13:08

 

Em 14 de março de 2007, a Revista Veja publicou um texto na seção “Carta ao leitor” que, na ocasião, provocou certa polêmica e discussão. Neste editorial, a Revista informava que a partir daquela edição a palavra “estado” somente seria escrita com a sua inicial em letra minúscula, tendo em vista que as palavras “povo”, “sociedade”, “cidadão”, “democracia”, “justiça”, entre outras, eram assim grafadas. Afirmava o artigo que escrita com “maiúscula, estado simboliza uma visão de mundo distorcida, de dependência do poder central”, sendo necessário afirmar o espaço do indivíduo. Segundo Veja, não se faria uma “entronização simbólica do indivíduo” com a grafaria dos termos que lhe são referentes em letra maiúscula, pois não havia intenção de sobrepô-lo ao estado, apenas se queria demonstrar que ambos eram imprescindíveis para se construir uma “dimensão mais equilibrada da vida em sociedade” (VEJA, 14 de março de 2007, Carta ao leitor, p. 9). Embora a publicação possa ter tidos motivos outros para tal postura, distintos da reflexão que ora se faz a respeito da relação dialética entre Estado e sociedade civil na elaboração do direito e, considerando que aqui se grafa com letra maiúscula a palavra “Estado”, ponderou-se ser este acontecimento da vida social brasileira de alguns anos atrás um ponto de partida interessante para este capítulo. Uma vez que se discorreu sobre conceitos relevantes à análise da resiliência estatal – cidadania, Estado Democrático de Direito, pluralismo jurídico – pretende-se nesta parte do estudo aprofundar questões tangentes à participação popular, importante mecanismo de inserção jurídico-política no Brasil.

 

E, para examinar o tema mais proximamente, é preciso focalizar com clareza em que ponto desta relação de poder se encontra cada um destes dois protagonistas, especialmente na América Latina, que possui democracias tardias e onde a articulação da sociedade civil em prol de um arranjo político mais aberto e participativo se intensificou nos últimos anos. Muito distantes dos indivíduos que firmaram o contrato social com o Estado, os cidadãos atuais posicionam-se como corresponsáveis e agentes de mudanças. Invoca-se a autonomia da sociedade civil frente ao Estado, não para separá-la deste último, mas de modo a reconhecê-la como parceira, termo muito usual em nossos dias. Nesse cenário, o desafio apresentado à norma jurídica tem sido o de, adequadamente, instrumentalizar a participação popular legítima, assegurando-lhe espaço político e preservando direitos fundamentais. Nos últimos vinte anos houve grande preocupação no Brasil em assegurar-se o princípio da representatividade, pelo qual os cidadãos estariam presentes e seriam ouvidos no governo. Novos partidos políticos surgiram no Brasil e um inovador arranjo institucional foi desenvolvido politicamente. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 garantiu importantes direitos neste campo, sendo reconhecível o processo nacional de redemocratização no texto constitucional em vigor, preocupado em evitar os males do período ditatorial por meio da ativa participação dos cidadãos. Embora este modelo ainda não esteja perfeito – se é que tal é possível – ele ampliou os canais de comunicação entre poder público, notadamente os representantes políticos, e sociedade civil.

 

A promulgação da Constituição de 1988 reacendeu o desejo de que a ordem político-jurídica instaurada representasse, nesse novo momento histórico, uma oportunidade concreta de afirmação da igualdade entre os indivíduos e de participação democrática nas decisões políticas. Coincidindo com o término do Estado do Bem Estar Social brasileiro, o período da vigência da atual Constituição também foi afetado pela pauta neoliberal, que redistribuiu responsabilidades entre Estado e sociedade civil, além de criar novos espaços de agência popular.

 

“Art.1º

(...)

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

......................................

Art. 45 – A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal.

Art. 46 – O Senado compõe-se de representantes dos Estados e do Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário.

......................................

Art. 58 – O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.

(...)

§2º às comissões, em razão de matéria de sua competência, cabe:

(...)

II – realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil;

(...)

IV – receber petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra ato ou omissões das autoridades ou entidades públicas”

 

Todavia, se o pluralismo político quer opor-se à uniformidade nociva do período histórico anterior, corre o risco, ainda assim, de manter a univocalidade. Uma vez que é inviável que cada brasileiro se manifeste individualmente a cada tomada de decisão pelo Estado, é preciso que sejam eleitos delegados que atuem em nome dos cidadãos. Tal representatividade, em um sistema democrático, há de garantir a participação também da minoria política para impedir a violação de direitos fundamentais. Proteger o sufrágio foi uma das primeiras ações das democracias modernas. Somente o indivíduo livre e cidadão poderia constituir o Estado de Direito. No entanto, com o passar dos anos ficou comprovado que eleger um representante pode ser insuficiente, se estiverem ausentes mecanismos de contenção dos abusos de poder, como descrito por Robert Michels. O sistema eleitoral que vigorou no Brasil e em diversos países no século XX caminhou lentamente na garantia do sufrágio de natureza universal (direito de voto para todos, efetivamente) e mais ainda na criação de instrumentos eficazes de controle sobre a conduta dos representantes. A efetivação da esperança democrática, hoje, também depende do aperfeiçoamento dos mecanismos pelos quais o indivíduo comum consiga manifestar sua vontade política, sem que esta seja diluída em um emaranhado de burocracias, em suma, inacessíveis e, por diversas ocasiões, incompreensíveis. O cidadão não pode sentir-se desprovido de recursos que lhe permitam questionar de modo mais contundente a ação daqueles que o representam e tampouco para manifestar sua insatisfação, o que tem sido feito, atualmente, através da judicialização de questões políticas. É sabido que o Estado concentra a maior parte dos processos em tramitação no Judiciário brasileiro.

 

Igualmente, é importante ressaltar que sem a necessária inclusão digital, as tentativas já existentes de aproximar poder público e cidadão persistirão na ineficácia, uma vez que os principais meios de acompanhamento e manifestação de opinião que hoje são empregados pelo Estado para a oitiva popular são eletrônicos, o que é grave, considerando o alto número de pessoas sem domínio de tecnologias, até mesmo por serem ainda caras para o indivíduo comum. As lan houses têm sido uma alternativa nos meios urbanos, todavia este recurso claramente não é a solução adequada. É preciso avaliar corretamente os instrumentos que permitem o acesso democrático ao indivíduo comum ou, do contrário, fica patente a prevalência dos grupos sociais mais providos de recursos, reforçando a particularização das políticas públicas e o reconhecimento de forma segmentada e desigual. Assim, sob a perspectiva constitucional e democrática, o modo de construção de acessos legais aos instrumentos democráticos para o indivíduo comum permite sua inserção no âmbito das decisões políticas do país. Esta medida segue uma das orientações do Projeto “Pensando o Direito” (Projeto BRA/07/004), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) firmado em parceria com a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL), cujo intuito é democratizar o acesso às informações no processo de elaboração de normas. Este acesso às informações deve ser exercido igualmente no incremento da participação social para o controle dos mandatários, antes e depois das eleições, visando assegurar o cumprimento do princípio da transparência.

 

 

 

Se em decorrência do mau o funcionamento dos seus mecanismos de acesso e órgãos institucionais o Estado deixar de representar interesses significativos para o cidadão brasileiro, preocupando-se mais com as questões promovidas pelos lobbistas que continuamente ocupam os corredores das Casas Legislativas, o resultado poderá ser uma legislação criada sob essas condições que alcançará sua validade dentro do território, por força do princípio da legalidade, mas sofrerá grande risco de ver-se frustrada quanto à sua esperada eficácia social. Leis desprovidas de finalidade prática dentro da sociedade são continuamente publicadas, enquanto outras, de cabal interesse da população aguardam às vezes décadas para que sejam votadas. Isso reforça o fenômeno da judicialização, já mencionado, uma vez que o Poder Judiciário, como no recente caso do reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo pelo Supremo Tribunal Federal, passa a ocupar a posição de “legislador de urgência” em substituição aos Poder Legislativo.

 

Se esta situação é ou não interessante à preservação do paradigma estatal moderno, o Estado de Direito com tripartição de poderes, é algo a se refletir, De imediato, o que se pode perceber é que tal confronto entre Poderes já existe e é muitas vezes uma conseqüência das pressões sociais. Faz parte desse processo de redefinição dos papéis do Estado e da sociedade civil; da ressignificação do termo cidadania, também. Afinal, como outrora afirmou Boaventura de Sousa Santos, é preciso transformar o operário-cidadão em cidadão–operário, ou seja, conceder a milhões de brasileiros que recebem uma cidadania de segunda classe espaço político e jurídico, por meio de uma educação cidadã, para que possam participar com equanimidade. Nisso os projetos de extensão das universidades e faculdades de direito terão sempre fundamental capacidade de colaboração, por formarem indivíduos preparados para promover a cidadania, assim como poderem instruir melhor a população. O protagonismo da sociedade civil não depende da grafia; depende da sua inclusão no projeto de país que, através da Constituição, se pretende construir para o Brasil.

 

 

 

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