Perspectivas de recall político no Brasil

26/10/2010 13:26

A análise sumária aqui exposta fez parte de uma pesquisa iniciada em 2009 sobre o tema, intitulada “Recall político: avaliação do acesso democrático”, e empreendida ao longo de alguns meses junto ao Núcleo Acadêmico de Pesquisa (NAP), da Faculdade Mineira de Direito, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Esta pesquisa irá compor um dos capítulos da tese a ser defendida perante esta mesma instituição, em que sou doutoranda em Direito, que versa sobre a “Aquisição de legitimidade formal pelos sistemas normativos extraestatais: o novo cidadão”, tema que se origina nos movimentos sociais e políticos que rearranjaram a sociedade civil brasileira nas últimas duas décadas e redefiniram seu papel-cidadão perante o Estado através de novas formas de participação. O Grupo de Estudos sobre Recall Político (GERP) funcionou durante aproximadamente seis meses, na Unidade Coração Eucarístico da PUC Minas.

 

Conceito de Destituição de Cargo Eletivo

 

A destituição de cargo eletivo, ou revogação do mandato político, consiste na possibilidade de avaliação do acesso democrático de um povo às instituições políticas de seu país e do nível de qualidade da representação do cidadão pelos mandatários eleitos. Sua regulamentação ainda é objeto de discussão pelo Congresso brasileiro, embora tenha já sido adotado em outros países, e é defendida por ser um importante instrumento de participação popular, como se verá adiante. É uma medida política gerenciada pelo Poder Legislativo através da qual os eleitores podem retirar de cargos eletivos os candidatos escolhidos durante um pleito democrático – eleições nacionais, estaduais, distritais ou municipais – e que hajam descumprido suas funções, especialmente seu compromisso para com os seus representados. Por isso, não se realiza por meio de ação judicial ou decreto do executivo, mas pela via política strictu senso. Também não se destina a destituir servidores públicos concursados e tampouco ocupantes de cargos comissionados, mas a servir como uma medida complementar ao controle interno feito sobre a conduta dos parlamentares pelo Poder Legislativo, ampliando o controla social sobre os mandatários eleitos.

A destituição de cargo eletivo nasce da vontade do cidadão de não deixar que os cargos eletivos sejam ocupados por aqueles que prejudiquem os interesses do povo, fornecendo à sociedade meios para avaliar o trabalho exercido pelos seus representantes. Portanto, adota o conceito de mandato imperativo, segundo o qual o mandatário (leito) deve esforçar-se para cumprir o que manifesta a vontade do mandante (eleitor). A terminologia mais empregada adveio do inglês, recall, e indica o processo de reivindicação do posto de representante político àqueles que se mostraram indignos de ocupá-lo. A palavra recall possui duas acepções: a) lembrar, significando aqui o ato de recordar ao representante qual o seu papel político e como deveria exercê-lo; b) pedir o retorno ou a devolução de algo, no caso, o cargo eletivo ocupado pelo representante que tenha sido considerado indigno de exercê-lo. Dessa maneira, completa-se o ciclo proposto pela Constituição de 1988, em que povo e Estado governariam democraticamente, em equilíbrio de forças. Não é possível que se permita, nos dias atuais, a transformação do voto em ato de renúncia da soberania popular.

Segundo Paulo Bonavides, o recall político é um instituto da democracia semidireta que assegura ao representado o direito de revogar o mandato de seu representante (BONAVIDES, 2000, p. 281-282). Esta prerrogativa seria inerente à relação de identidade entre eleito e eleitor e justificada pelo rompimento deste vínculo pelo mandatário político cuja conduta se desviasse da proposta de representação apresentada, como por exemplo, o programa da campanha eleitoral. Considera, ainda, o eminente jurista, que na atualidade o ocupante de cargo eletivo é muito mais um mandatário da sociedade do que o representante de um único indivíduo, como outrora defendia a perspectiva liberal. Após 1988, os interesses coletivos e difusos se tornaram preponderantes, embora não deva o Estado olvidar o espaço atribuído às liberdades individuais pela Constituição da República brasileira. Exemplo disso é a força que os movimentos sociais possuem para articular objetivos comuns tanto nas regiões metropolitanas – associação de moradores, grupos minoritários – quanto na zona rural. Muitos segmentos da sociedade elegem “representantes setoriais” para melhor identificar seus interesses e expô-los perante o governo no âmbito do Poder Legislativo, v.g., ruralistas, evangélicos, empresários, sindicalistas, aposentados, ambientalistas, estudantes, entre outros. Naturalmente, a presença de lobbistas interfere na dinâmica política e, muitas vezes, desequilibra a relação Estado-sociedade civil.

Desse modo, esse novo entendimento sobre o que seja o princípio da representatividade contrapõe-se a outro princípio da seara política, o da irrevogabilidade do mandato eletivo (BONAVIDES, 2000, p. 338). Uma vez que o representante deve conduzir-se conforme o compromisso firmado com seus representados, individualmente ou relativamente a um grupo, seu mandato terá a mesma duração do que convencionamos denominar neste artigo de pacto de representação. Qualquer postura inadequada ou ofensiva àqueles que lhe delegaram o cargo eletivo pode e deve ser considerado um rompimento com o compromisso firmado, aqui se aplicando, inclusive, o dever de não prejudicar o representado. Quanto à possibilidade de revogação do mandato eletivo, atualmente, explica BONAVIDES serem duas (2000, p. 377-379): a) individual, denominadarecall, cujo exemplo mais antiga nas Américas é a legislação dos Estados Unidos, pela qual apenas o representante (ou representantes) eleito cuja conduta seja incondizente com o cargo será dele destituído; b) coletiva, em que se destitui toda a assembléia eleita, conforme o modelo suíço. Convém destacar que, neste último caso, continua proibida a cassação autoritária do parlamento por algum governante, se democrático o regime político. O que ocorre na revogação coletiva de mandato político é a destituição, por vontade popular livremente manifestada em petição ou por votação, do conjunto de representante eleitos, uma vez considerados indignos do cargo por conduta antiética ou incompetência. Após destituídos, outros mandatários serão eleitos para que o parlamento continue a funcionar normalmente. Este procedimento de natureza coletiva é denominado Abberufungsrecht e é admitido pela legislação de sete cantões suíços. Como a proposta brasileira é de revogações específicas de mandatos, a nomenclatura recall é a mais aplicável.

 

Exemplos na América Latina 

 

Este instituto encontra amparo na legislação de outros países latino-americanos, embora seja contemplado regional ou localmente apenas. São exemplos a revocatória del mandato prevista no art. 183, n. 4, da Constituição da Província de Córdoba, na Argentina, além de sua menção nas legislações de Santa Fé e Entre Rios. Somente foi invocado em Córdoba, mas sem eficácia, pois processos judiciais apresentados pelo mandatário político questionado, Kammerath Gordillo, permitiram-lhe cumprir o mandato até o fim antes que uma decisão final fosse proferida. Na Colômbia: “La revocatoria del mandato es un derecho político, por médio del cual los ciudadanos dan por terminado el mandato le que han conferido a un gobernador o alcalde” (Art. 6º, Lei 134/1994). Seu trâmite está disponível on line para conhecimento pelos cidadãos (https://www.gobiernoenlinea.gov.co/contenido_ ciudadanos.aspx?temID=69&traID=2927). No Equador, os Arts. 109 a 113 da Constituição (1998) do país disciplinam o uso deste instituto contra políticos eleitos que pratiquem a corrupção ou descumpram seu plano de trabalho, o qual deve ser apresentado junto com o registro de candidatura, vinculando o candidato a suas promessas. Neste Estado, o mínimo de assinaturas necessárias é de 15%. Já a legislação boliviana prevê oreferendum revocatorio de mandato popular na Lei 3850/2008 – realizou-se um em 2008 para confirmar o mandato do Presidente Evo Morales. Em 2009 foi promulgada a nova Constituição desse país, que manteve o instituto no Art. 240 do texto constitucional e seus incisos, recepcionando a legislação infraconstitucional anterior naquilo que não lhe for contrária.

 

República de Bolivia – Constitución Política del Estado

(Texto aprovado no referendo constituinte de janeiro de 2009)

 

Artículo 240.

I. Toda persona que ejerza un cargo electo podrá ser revocada de su mandato, excepto el Órgano Judicial, de acuerdo con la ley.

II. La revocatoria del mandato podrá solicitarse cuando haya transcurrido al menos la mitad del periodo del mandato. La revocatoria del mandato no podrá tener lugar durante el último año de la gestión en el cargo.

III. El referendo revocatorio procederá por iniciativa ciudadana, a solicitud de al menos el quince por ciento de votantes del padrón electoral de la circunscripción que eligió a la servidora o al servidor público.

IV. La revocatoria del mandato de la servidora o del servidor público procederá de acuerdo a Ley.

V. Producida la revocatoria de mandato el afectado cesará inmediatamente em el cargo, proveyéndose su suplencia conforme a ley.

VI. La revocatoria procederá una sola vez en cada mandato constitucional del cargo electo.

 

No Peru está em tramitação o Projeto de Lei 3751/2009, que pretende inserir no texto constitucional desse país a revocatória, ou recall. Na Venezuela, em 2004, o instituto, que ali é denominado referendo revocatório, foi utilizado para confirmar se a população desejava permitir a continuidade do mandato do Presidente Hugo Chaves. Em 2009, boa parte da sociedade colombiana, impulsionada pelos segmentos insatisfeitos com a aprovação de um referendo para permitir ao Presidente Alvaro Uribe um terceiro mandato, movimentou-se com o intuito de exigir uma revocatória do mandato presidencial, unindo-se aos grupos que na Venezuela ressentem-se da tumultuada eleição que confirmou Chaves no poder. 

 

Importância do procedimento para o Brasil

 

1 Promover a cidadania participativa

 

Nos últimos vinte anos houve grande preocupação no Brasil em assegurar-se o princípio da representatividade, pelo qual os cidadãos estariam presentes e seriam ouvidos no governo. Novos partidos políticos surgiram no Brasil e um inovador arranjo institucional foi desenvolvido politicamente. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 garantiu importantes direitos neste campo, sendo reconhecível o processo nacional de redemocratização no texto constitucional em vigor, preocupado em evitar os males do período ditatorial por meio da ativa participação dos cidadãos. Embora este modelo ainda não esteja perfeito – se é que tal é possível – ele ampliou os canais de comunicação entre poder público, notadamente os representantes políticos, e sociedade civil. A promulgação da Constituição de 1988 reacendeu o desejo de que a ordem político-jurídica instaurada representasse, nesse novo momento histórico, uma oportunidade concreta de afirmação da igualdade entre os indivíduos e de participação democrática nas decisões políticas. Coincidindo com o término do Estado do Bem Estar Social brasileiro, o período da vigência da atual Constituição também foi afetado pela pauta neoliberal, que redistribuiu responsabilidades entre Estado e sociedade civil, além de criar novos espaços de agência popular.

Todavia, se o pluralismo político quer opor-se à uniformidade nociva do período histórico anterior, corre o risco, ainda assim, de manter a univocalidade. Uma vez que é inviável que cada brasileiro se manifeste individualmente a cada tomada de decisão pelo Estado, é preciso que sejam eleitos delegados que atuem em nome dos cidadãos. Tal representatividade, em um sistema democrático, há de garantir a participação também da minoria política, do contrário, ter-se-ia a “ditadura da maioria”, o que poderia indevidamente permitir a violação de direitos fundamentais. Proteger o sufrágio foi uma das primeiras ações das democracias modernas. Somente o indivíduo livre e cidadão poderia constituir o Estado de Direito. No entanto, com o passar dos anos ficou comprovado que eleger um representante pode ser insuficiente, se mecanismos de contenção dos abusos de poder estiverem ausentes. O sistema eleitoral que vigorou no Brasil e em diversos países no século XX caminhou lentamente na garantia do sufrágio de natureza universal (direito de voto para todos, efetivamente) e mais ainda na criação de instrumentos eficazes de controle sobre a conduta dos representantes.

 

2 Valorizar a democracia, especialmente por meio digital

 

A efetivação da esperança democrática, hoje, também depende do aperfeiçoamento dos mecanismos pelos quais o indivíduo comum consiga manifestar sua vontade política, sem que esta seja diluída em um emaranhado de burocracias, em suma, inacessíveis e por diversas ocasiões incompreensíveis. Necessita de instrumentos melhores para se avaliar e fiscalizar a atuação dos representantes do povo de modo a evitar o rompimento de compromissos pactuados durante as campanhas eleitorais, como muitas vezes ocorre. O princípio da transparência pública, com certeza, é uma contribuição relevante na relação com a sociedade civil ao permitir o acompanhamento dos gastos públicos, e as audiências públicas aproximam o Legislativo dos cidadãos. E, deve-se levar em conta que as transformações tecnológicas, notadamente a comunicação através da rede de computadores, a internet, exigem do cidadão um conhecimento específico para acompanhar a ação dos mandatários. Assim, a exclusão digital agrava as limitações impostas à participação popular nos debates políticos, pois embora os sítios dos Poderes Legislativos federal, estaduais, distrital e municipais sejam repletos de informações úteis, a interação on line nem sempre está acessível a todos. O cidadão não pode sentir-se desprovido de recursos que lhe permitam questionar de modo mais contundente a ação daqueles que o representam e tampouco para manifestar sua insatisfação, o que tem sido feito, atualmente, através da judicialização de questões políticas. É sabido que o Estado concentra a maior parte dos processos em tramitação no Judiciário brasileiro.

Igualmente, é importante ressaltar que sem a necessária inclusão digital, as tentativas já existentes de aproximar poder público e cidadão persistirão na ineficácia, uma vez que os principais meios de acompanhamento e manifestação de opinião hoje empregados pelo Estado para a oitiva popular são eletrônicos, o que é grave, considerando o alto número de pessoas sem domínio de tecnologias, até mesmo por serem ainda caras para o indivíduo comum. As lan houses têm sido uma alternativa nos meios urbanos, todavia este recurso claramente não é a solução adequada. É preciso avaliar corretamente os instrumentos que permitem o acesso democrático ao indivíduo comum. Assim, sob a perspectiva constitucional e democrática, o modo de construção de “acessos legais” aos instrumentos democráticos para o indivíduo comum permite suainserção no âmbito das decisões políticas do país. Esta medida segue uma das orientações do Projeto “Pensando o Direito” (Projeto BRA/07/004), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) firmada em parceria com aSecretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL), cujo intuito é democratizar o acesso às informações no processo de elaboração de normas. Este acesso às informações deve ser exercido igualmente no incremento da participação social para o controle dos mandatários, antes e depois das eleições, visando assegurar o cumprimento do princípio da transparência.             

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