Por que lembrar?

10/01/2011 13:30

Paul Ricouer, filósofo francês que faleceu em 2005, entre as suas últimas obras deixou-nos um excelente livro chamado “A memória, a história, o esquecimento”, no qual, entre as muitas reflexões que faz, expõe o quanto é importante para algumas sociedades e indivíduos o que chama de “dever de não esquecer”. Esse dever seria um compromisso com a verdade, mantendo-a sempre viva por meio da constante rememoração dos fatos. Isso acontece com o processo de Tiradentes, por exemplo, pois todos os anos recordamos a injustiça e a traição sofridas por ele, como forma de não esquecer um passado significativo. De certa maneira, as datas comemorativas dos calendários, já dizia o sociólogo Everett Hughes, possuem esse sentido do “dever de lembrar”, da “obrigação de não esquecer” fatos relevantes para a vida de uma sociedade e que fazem parte de sua formação, de sua história. Essas datas também compõem, segundo ele, nossos “ritos de passagem”. Assim como viver o luto, ir ao cemitério pôr flores no túmulo de familiares e amigos falecidos é um ritual que marca nossa vivência e tem significado em nossa história – não esquecê-los, não “abandonar” – as datas no calendário são necessárias, como Tiradentes, Independência do Brasil, Dia das Mães, Dia da Luta contra Aids, a promulgação da Constituição de 1988 (mesmo que nem todas sejam feriados). Assim não esquecemos como esses acontecimentos foram importantes em nossa trajetória.

 

É nesse ponto que olhamos para a polêmica entre a posição assumida pela atual ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, e aquela adotada pelo Ministro de Defesa, Nelson Jobim, quanto à criação da Comissão da Verdade e ao cumprimento da sentença da Organização dos Estados Americanos (OEA), órgão vinculado à ONU, ambas com o intuito de que sejam investigados os crimes cometidos no regime militar. Qual será o “Brasil” que deseja se lembrar dos horrores cometidos durante a ditadura militar? Quem tem o dever de preservar essa memória? O duelo se trava, hoje, entre os que “não podem e não querem” esquecer, como os familiares das vítimas, para que as gerações futuras valorizem a democracia conquistada com um alto preço, e os que lutam pelo “apagamento” dos rastros. Nesse embate, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça já vinha desenvolvendo um importante papel de ser uma “instituição social para o arquivo”, nas palavras de Ricouer, ou seja, destinada a impedir o esquecimento pela memória através da coleta de depoimentos e documentos sobre os fatos ocorridos naquele período. Formar uma “memória nacional” da ditadura foi um gesto que enfrentou desafios, como os arquivos da Aeronáutica que foram encontrados queimados há alguns anos, antes que a Comitiva dessa Comissão conseguisse autorização para acessá-los.

 

O desafio é realmente imenso. A Comissão da Verdade nem bem nasceu e já existem ações no sentido de dificultar a sua atuação, pois seria perder tempo olhando para o passado. Mas nós o fazemos quando recordamos a forma como a República foi proclamada em 1889. Sim, o passado importa, mesmo que nem sempre tenha sido construído de modo a nos orgulharmos dele. Uma proposta adequada foi a de que sejam investigados os excessos praticados em ambos os lados, o que seguiria a mesma postura da Comissão Verdade e Reconciliação promovida por Nelson Mandela na África do Sul, que tanto puniu criminosos brancos que haviam perseguido os negros durante o apartheid, quanto puniu os excessos contra civis inocentes praticados pelos grupos de luta por igualdade formado por jovens negros. Em seu último capítulo do livro citado, Ricouer fala o quanto é difícil recomeçar a história, pois há fatos que não se pode esquecer, mas para seguir adiante é preciso um longo e difícil processo de “perdão”. Como fazê-lo e quais os seus limites é, ainda, um desafio para a própria áfrica do Sul, e também para o Brasil. Sobre isso vale a pena assistir ao vídeo “Desmond Tutu – sobre o perdão”, que está disponível na internet, em que este ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1984 fala sobre o árduo trabalho da sociedade de seu país para “perdoar o imperdoável”. Nossos ministros terão muito que dialogar pelos próximos anos e nós, como brasileiros, devemos estar atentos e participar, pois nossa história continua sendo escrita, agora por nós mesmos. 

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