Serenidade a toda prova

25/03/2011 12:06

Há alguns anos li o texto de Sêneca "A tranquilidade da alma", carta escrita a seu discípulo Sereno com bons conselhos sobre o bem viver. Até hoje me esforço para conseguir que sejam uma pauta em minha vida alguns desses aconselhamentos. Invoco esse texto hoje, aqui, porque a agitação dos nossos dias tem causado uma série de transtornos em nossas vidas pessoais e no campo profissional igualmente. Sinto que a tolerância com o outro já não é a mesma. E como salienta o filósofo do Direito Axel Honneth, sem reconhecer a importância da existência desse "outro" nós poderemos comprometer nossa convivência social e o modo como aproximamos direito e realidade. Há tempos coloquei um post nesse site sobre Administração Emocional de Conflitos - AEC (t.co/pjCA63X) visando refletir sobre a importância de se solucionar, constantemente, conflitos emocionais no âmbito das atividades jurídicas - docência, audiências judiciais, etc. -  o que tem exigido muito esforço de todos nós envolvidos nese processo. Nesse sentido também recomendo a leitura do texto do Prof. Luciano Gomes dos Santos, "A metamorfose da educação na existência humana": logoseeros.blogspot.com/2010/04/metamorfose-da-educacao-na-existencia.html

 

Os desafios humanos são numerosos no exercício de qualquer profissão, mas na docência eles envolvem algo mais. Exigem uma grande dose de capacidade "escutatória", nas palavras de Paulo Freire. Saber ouvir deveria ser requisito indispensável de todo docente, seja no ensino jurídico, técnico ou em qualquer modalidade de aprendizagem. Aliás, deveria ser considerado fundamental para a vida como um todo. Nisso retorno ao tema que constantemente vem à tona quando o debate é sobre educação jurídica. Formamos bem nossos docentes? Eles possuem o adequado preparo didático, ou simplesmente são reprodutores do sistema de ensino que receberam, sem interagir verdadeiramente com os discentes? Há, ainda, muita resistência quanto à transformação do perfil do professor, notadamente nos cursos superiores. Como se bom relacionamento humano, educação e capacidade de escutar não fizessem parte do "pacote" de habilidades que se deve ter para atuar na área acadêmica. Fazem, sim. A postura tirânica que se oculta por trás de uma falsa alegação de "objetividade", na verdade, é um mecanismo muito falho usado para tentar disfarçar a inadequação pedagógica do profissional. O "medo de perguntas" reflete ou insegurança quanto ao domínio do conteúdo, ou a arrogância de quem se considera acima do "outro", o que prejudica fortemente o grau de reconhecimento e de dignidade nas relações entre alunos e professores. 

 

Há poucos dias, um amigo da Faculdade Arnaldo Janssen, o Prof. Cristiano Erse (erse.webnode.com.br) citava o livro da também Prof.ª Miracy Gustin (e outros), "Pedagogia da emancipação" (Editora Fórum), como uma obra de referência que todo docente deveria ler, especialmente nós, que somos da área jurídica, como a ilustre professora. Este livro, assim como outros materiais ricos que têm sido publicados como livros ou artigos em anais de congressos ou revistas contribuem para a formação técnico-acadêmica, que é muito distinta da formação meramente técnica ou meramente acadêmica. O professor de Direito que não conhece a prática de sua profissão, em suas múltiplas carreiras jurídicas, e o mundo em que vive não saberá aplicar os conteúdos propostos, comprometendo a transformação da leitura doutrinária e legal em conhecimento. Da mesma forma, o grande prático sem didática também não ensina; pior, corre o risco de sustentar uma convivência ácida e pouco cortês com o alunado por considerar que não faze parte de suas tarefas como docente ouvir, apoiar e dedicar-se ao tempo e à necessidade desse "outro" que é o aluno, seu parceiro na educação. Os atritos universitários advêm muitas vezes da agressividade generalizada que hodiernamente impera na sociedade brasileira, sem gentilezas ou boa estima do semelhante. Falta o mínimo básico de etiqueta social. Mas, por vezes, também decorre da postura pouco profissional com a docência de alguns profissionais, acostumados a "ordenar", não a "dialogar". 

 

É preciso, parece, ainda um longo esforço para conscientizar os sujeitos do processo educacional - alunos e professores - sobre as RESPONSABILIDADES DE UM PARA COM O OUTRO. Sim, porque a educação é uma responsabilidade. O aluno deve estudar, sacrificar seus finais de semana quando preciso, ler muitas horas, cumprir com suas obrigações antes que tenha legitimidade para "cobrar". O docente deve se preparar, quanto ao conteúdo e quanto à didática, assim como interagir no meio acadêmico: com seus pares, com a comunidade através de projetos de extensão (que muitos ainda possuem resistência contra), com o alunado, com os demais funcionários da instituição de ensino. A mercantilização do ensino que há anos vem tomando conta da realidade educacional prejudicou muito a convivência humana. Precisamos resgatá-la. E não é esta uma questão utópica. Toda transformação é possível quando os sujeitos a que ela se refere estão dispostos a mudar a si mesmos e ao cenário em que vivem. Abandonemos a dicotomia de papéis: "bom", "mau". Todos nós temos defeitos e competências que precisam ser articulados em parceria. Separações somente conduzem a situações limítrofes ao absurdo, como no conto de Ítalo Calvino, "O Visconde partido ao meio". 

 

Esse ano, muitas esferas da educação jurídica estão debatendo sobre educação jurídica de qualidade. Admito que o tema não é novo. Mas em ano algum anteriormente tantos eventos foram organizados simultaneamente por profissionais da carreira docente, muitos representados pela Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDI), por profissionais de outras carreiras jurídicas, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por associações discentes, como a Federação Nacional de Estudantes de Direito (FENED) e os COREDs, sem contar os DAs e encontros paralelos promovidos para pensar a respeito do futuro da formação dos bacharéis no Brasil. Não é hora de disputar terreno, seja entre alunos e professores, ou entre entidades. O momento conclama à união, à capacidade "escutatória", ao reconhecimento uns dos outros para o bem do Direito. Longe de massificar as opiniões, criará, sim, espaço para a diversidade de propostas e de formas de realização do sonho de atuar em uma carreira jurídica com satisfação.

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