Síntese da palestra do Prof. Daniel Cerqueira no "I Congresso Mineiro de Ensino Jurídico, Estágio e Exame de Ordem" (Belo Horizonte, 10-09-2010)

11/09/2010 11:17

A educação jurídica brasileira sofre hoje quatro graves problemas que serão aqui abordados:

 

1º Problema: Falsa dicotomia entre teoria e prática

 

Essa dicotomia não existe e a tentativa insistente em se ensinar nos cursos jurídicos com uma metodologia pautada sobre essa crença falsa prejudica a qualidade da formação dos bacharéis e dificulta a aprendizagem pelos discentes de uma postura verdadeiramente crítica a respeito do Direito. Embora todos os Projetos Pedagógicos sejam descritos como ”críticos” e não positivistas ou conservadores, na realidade, na esmagadora maioria dos casos, todos eles possuem essa característica tradicional e pouco acrescentam de inovador. Por exemplo, a aula expositiva permanece com a falaciosa denominação de “aula dialogada”. A teoria e a prática devem ser ensinadas simultaneamente para dinamizar as aulas, aperfeiçoar a formação do bacharelando e permitir, aí sim, uma percepção completa e crítica sobre o Direito. Separá-las é como arrancar um olho de uma pessoa; ela continuará a ver, mas perderá a noção de profundidade.

 

2º Problema: Erro de conceituação

 

O primeiro problema elencado existe também porque há um equívoco permanente na conceituação do que seja “teoria” e “prática”. Quanto à primeira, em geral presente nas disciplinas propedêuticas, há de tomar o cuidado de não fazer “a crítica pela crítica”, numa discussão estéril de natureza apenas doutrinária. Isso não é teoria e nada acrescenta à formação dos bacharéis em Direito. A filosofia, a sociologia, a história, a economia, entre outras, devem ser inseridas no contexto em que o Direito será exercido para se revelar aos alunos sua importância na efetivação de sua profissão com maior profundidade e qualidade. Seu conhecimento deve representar um cabedal que enriqueça a prática jurídica e esteja aliado a ela. Quanto à segunda, em geral reconhecida nas disciplinas de natureza estritamente jurídica como processo e direito civil, é comum os docentes confundirem a mera leitura rotineira dos artigos dos códigos e da legislação em sala como a noção de “aula de natureza prática”. Não, a aula é técnica, mas de efetivação da profissão nada ensina se os alunos não tiverem a oportunidade de concretamente aprenderem atos da rotina jurídica.

 

Por exemplo, listar os contratos existentes no Código Civil não é aula prática de contratos. A prática reside na elaboração em sala de contratos pelos alunos. É preciso ensiná-los a fazer petições, pedidos de cautelares, pacto antenupcial, etc. Os docentes jurídicos de agora não podem continuar a “reproduzir” o modelo no qual foram formados, pois este já está ultrapassado e se mostrou ineficaz. Aulas equivocadamente chamadas de práticas como estas e outras simuladas que existem são semelhantes a um curso de direção à distância, em que o aluno responde às perguntas sobre como dirigir, faz as provas e, se aprovado, recebe a carteira de motorista e vai dirigir pela primeira vez quando a receber. Tal ocorre hoje com os discentes do Direito, que ficam cinco anos em teorias e “práticas” teóricas, são muitas vezes aprovados no exame de ordem, e quando recebem sua carteira de advogados vão efetivamente atuar pela primeira vez, não raro sem saber como proceder.

 

3º Problema: Ensino conteudista

 

A metodologia mais empregada nas faculdades de Direito hoje é a do “esgotamento dos códigos” em sala durante as aulas, o que reforça a característica positivista e pouco crítica da educação jurídica atual quando vista no seu dia a dia, não obstante o que diga o projeto pedagógico. E “cumprir a ementa” é considerado mais importante do que a aprendizagem do alunado, por isso os professores de Direito seguem adiante com o conteúdo, sem fazer, regra geral, nenhuma avaliação parcial do aproveitamento da disciplina e da assimilação desta pelos discentes. Cumprido o programa consideram seu trabalho feito. Não importa se muitos decoraram os textos apenas para serem aprovados na disciplina e, no semestre seguinte já esqueceram o que decoraram. É preciso asseverar que não é a quantidade de conteúdo que forma o bom bacharel, mas a sua qualidade. O conteúdo também precisa ter significação para o aluno, pois assim ele o manterá nos próximos semestres, visto que compreenderá sua vinculação com a prática. Por isso teoria e prática nunca podem estar separadas.

 

Por exemplo, o conteúdo de matemática ensinado em sala no Brasil é muito maior do a quantidade ministrada nos Estados Unidos. No entanto, a nota dos alunos deste país na prova PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) é consideravelmente maior do que a obtida pelos brasileiros, posto que aprende a raciocinar obre eles, trabalhá-los. Não basta, logo, que os alunos dos cursos jurídicos acumulem dados e informações. Melhor será que não tenham que decorar tantos tópicos, mas através de alguns conteúdos escolhidos aprendam o modo de pensar e agir em cada área (civil, penal, etc.). Também é preciso evitar a compartimentalização do ensino; por exemplo, o direito material e o direito processual precisam ser ministrados conjuntamente. Se um aluno estuda Penal I no início do curso e, quatro semestres depois Processo Penal, que vinculação fará entre ambos com qualidade? Ou já esqueceu o conteúdo do primeiro (que normalmente “decorou para passar”) ou a lei já mudou e o que ele aprendeu não serve para o atual momento. A interdisciplinaridade precisa estar presente para que o raciocínio e a análise, que são realmente reflexivos, prevaleçam sobre a memorização e as dicotomias hoje presentes nos cursos pela separação teoria e prática e pela compartimentalização do conhecimento.

 

Um dos piores efeitos da compartimentalização é a criação excessiva de disciplinas e carga horária para suprir as dificuldades de aprendizagem em outras áreas, ao invés de corrigir os erros metodológicos que elas possuem, por exemplo: prática só no estágio (criam-se várias etapas de estágio simulado, inclusiva, no final dos cursos), aula de oratória (o professor não pede trabalhos com apresentação oral na sua disciplina), conteúdos partilhados por disciplinas que são ensinados separadamente e sem coerência entre as aluas dos docentes (“não é minha responsabilidade o que o outro professor faz”). As diretrizes curriculares são muito mal compreendidas pelas instituições de ensino jurídico e pelos docentes da área. Um exemplo grave nos dias de hoje é o estágio. Deixa-se para ministrar a prática apenas quando chega o período estágio, ou seja, o aluno vai a campo sem saber fazer, delega-se aos escritórios conveniados a responsabilidade, que seria da faculdade, de prepará-los. Os riscos dessa postura são a assimilação de condutas antiéticas (como “lubrificar a máquina” pagando propinas), o individualismo (pois na faculdade ele aprenderia a atuar em equipe e, em geral, a postura nos escritórios e entre os profissionais de mercado é mais individualista), a má formação técnica (o advogado militante não é professor e no seu trabalho dificilmente se preocupará com a formação do aluno), assimilação de “maneirismos”, entre outros. Os estágios por meio da faculdade devem ser melhor orientados e os professores dessas disciplinas devem se responsabilizar pela orientação que fazem, ter preparo didático para fazê-lo, preocupar-se com a formação ética dos discentes e também ajudar a formar o pensamento estratégico com os alunos, para que se tornem profissionais mais seguros e capazes de atuar quando obterem sua carteira de advogados (também preocupando-se, na aprendizagem prática nas academias com aqueles que não possuem perfil nem desejam a advocacia, mas querem alcançar uma vaga nos quadros do Ministério Público, da magistratura, etc., que exigem preparo diferenciado.

 

4º Problema: Crise do Direito

 

Há várias décadas se afirma que o ensino do Direito está em crise. E isso é verdade. A dificuldade de vencer esse problema, no entanto, está não no direito, mas no fato que as ferramentas metodológicas são inadequadas, mas os professores das faculdades insistem em reproduzir o modelo em que foram formados. O docente jurídico ainda precisa perceber que, como qualquer professor, ele também precisa adquirir conhecimento pedagógico. É preciso pensar qual o papel do professor de Direito hoje, não no século XIX quando os cursos jurídicos foram criados (modelo ainda repetido). Naquela época, o conhecimento somente poderia ser alcançado através do professor, que era uma “ponte” entre o aluno e os conteúdos. Atualmente, com a internet, o docente que mantiver esse perfil vai ser encontrar dificuldades, pois “professor Google” fornece para o aluno em meia hora um volume de informações muito maior do que o docente em várias aulas. Se o professor apenas ensina por “aula dialogada” e repete os manuais e a legislação em sala, o Google o supera com facilidade. Além disso, há um enorme número de revistas jurídicas (impressas ou on line), livros (as publicações se multiplicaram) e outras fontes que o aluno tem à sua disposição. O professor não precisa mais ser um data finder (procurar e fornecer informações aos alunos). Compete-lhe ensiná-los a trabalhar com essas informações, saber o que fazer com elas, quais são úteis, quais não são, como selecioná-las e a partir delas produzir conhecimento jurídico para atuar na prática profissional.

 

É preciso ensinar a “ar significado” a esses conteúdos, lapidá-los e incentivar a pesquisa feita pelo próprio aluno. Um exemplo é a metodologia PBL (Problem Based Learning), metodologia centrada nos alunos e na solução de problemas concretos do dia a dia da profissão por eles, desde o início do curso de Direito. A Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), representada pelo Prof. João Virgílio Tagliavini entre outros, é um exemplo dessa possibilidade concreta de mudar a educação jurídica no Brasil com novos modelos de cursos jurídicos. A metodologia é hoje uma questão central no Direito: learning-doing (aprender fazendo), estudos de casos, PBL, prova operatória e outras metodologias que estimulem os processos mentais preliminares antes da efetivação da resposta. Não há tempo para compartimentar a educação, a prática precisa estar em sala de aula para que o ensino dos conteúdos seja integrado e permanente. Em razão disso, é preciso ainda repensar urgentemente os atuais modelos de avaliação dentro das disciplinas.

 

Outro ponto é a crise política do Direito, que perpassa sua finalidade. O que se espera hoje de um egresso desse curso e, também, o que os alunos esperam obter através dele? Nesse ponto, há duas respostas: a) se a expectativa é por diploma apenas, então não há crise, pois os alunos de Direito se formam majoritariamente; b) se a expectativa for por formação e, em especial, por formação de qualidade, a crise existe e é muito séria. E não será resolvida fechando-se cursos de Direitos. Deve-se, antes, permitir que bons cursos sejam abertos e tentar melhorar os ruins. Não adianta não abrir mais cursos se os ruins continuarem abertos. Nem simplesmente fechá-los e não abrir mais cursos, pois a demanda por ensino é justa, apenas precisa ser controlada em sua qualidade seriamente pela ABEDI, pelo MEC e pela OAB. Nesse sentido, o controle pela OAB, notadamente através do exame de ordem, precisa ser revisto, pois no atual modelo corre o risco de “matar” a educação jurídica como o vestibular “matou” o ensino médio – não se preocupam mais os sujeitos do processo de aprendizagem (alunos, professores, faculdades) com a qualidade da formação, mas apenas em “aprender macetes” para a prova da OAB.

 

E a OAB precisa assemelhar-se ao modelo do ENADE de avaliação reflexiva, na qual se exige a operacionalidade do conhecimento. Há uma distância metodológica entre a prova da primeira etapa, ruim, e a da segunda etapa, reflexiva. A OAB tem em mãos a oportunidade de influenciar beneficamente os cursos jurídicos e contribuir para sua melhoria – ou encerrar de vez com o debate sobre qualidade da formação do bacharel (segundo levantamento do Prof. João Virgílio, 85% das questões do último exame de ordem exigiam memorização, apenas “o regurgitar do que o professor ensinou” em sala ao citar os códigos). Mesmo na segunda etapa, a prova da OAB precisa abandonar a premissa de que “existe uma única resposta correta”, pois alguns examinadores corrigem as questões sob seu critério de “verdade”. Quanto aos resultados do exame, é preciso detalhar os dados apresentados por três razões:

 

a) A forma atual não permite distinguir no índice de cada faculdade os alunos por ano de formatura, o que é negativo e injusto com as instituições. Talvez os formandos de agora estejam com um excelente resultado (em razão da mudança de currículo ou da postura metodológica da instituição, por exemplo), mas o índice mantenha-se baixo devido aos alunos mais antigos, que repetem o exame mais de uma vez;

 

b) o índice precisa ser calculado a partir do número de alunos que efetivamente compareceu ao exame, não do total de alunos da instituição, pois falseia o resultado;

 

c) as faculdades de Direito, com estes dados, poderão requalificar os alunos dos anos em que haja muita repetição – é sua responsabilidade, na forma atual, o aluno que não passa por falha da faculdade fica sozinho na busca de solução para seu problema.

 

Por fim, é preciso aproximar academia e mundo real, trazer para a sala questões importantes do momento atual, debater casos com soluções difíceis ou ainda sem resposta, complexos, que abordem temas da globalização, por exemplo, como o navio do qual se desprendeu ácido sulfúrico na baía do Rio Grande no sul do país há alguns anos. O navio possuía uma bandeira, o contratante era de outro país, o local foi o Brasil, e outros tópicos complexos, reais, que exigiram dos juristas da época muita reflexão. A extensão na faculdade também é essencial, mas extensão entendida como aproximação da sociedade, do entorno (não os cursos de curta duração e outras atividades internas da faculdade para os próprios alunos e professores com o fito de gerar horas complementares). A extensão se faz externamente, pois o laboratório do Direito é a sociedade. Por isso seria interessante que as faculdades, além da definição do perfil do egresso, tivessem também perfis intermediários, que fossem acompanhados ao longo do curso para possibilitar ajustes antes que o aluno se forme. Pode ser ao final de cada semestre ou ano.

 

Nas palavras do Prof. Adilson Gurgel, primeiro Presidente eleito da Associação Brasileira do Ensino do Direito (ABEDi): “o estudante de Direito precisa recuperar a utopia de mudar o mundo”.

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