Uma breve reflexão sobre o livro "Vida de Laboratório": reconhecimento & conhecimento

08/11/2010 08:53

O livro "A vida de laboratório", de Bruno Latour e Steve Woolgar, lançado no Brasil pela editora Relume Dumará, dedica-se a responder uma pergunta: "Como são produzidos os fatos científicos?". Ao longo de sua análise sobre a convivência de um grupo de cientistas e o comportamento destes em relação à produção de resultados, às publicações em revistas acadêmicas e ao reconhecimento que conferem uns aos outros, os autores nos levam a outras indagações, que aqui serão significativas: 

 

a) Quem são nossos "pares" e que critérios usamos para reconhecê-los?

b) Qual é o "conhecimento" que deve ser produzido e sob qual justificativa?

 

Sobre a primeira indagação, o que mais preocupa os autores e, acredito que a muitos pesquisadores é a questão do reconhecimento. Há uma tendência à univocalidade quando o sistema de pares não assegura o respeito à diversidade de pensamento. Diálogos que não permitem o confrontamento verdadeiro de ideias, não são ciência. Debater energicamente até que todos sejam convencidos, pela retórica, à um pensamento único que gire em torno de autores escolhidos como referências é massificar a produção do conhecimento. Muitas vezes tem sido usado como um critério de reconhecimento acadêmico, um recurso para permitir, ou não, o acesso de novos pesquisadores ao campo dos cientistas e pesquisadores reconhecidos, uma vez que para alcançar o status de cientista respeitado, o pesquisador deve ser aceito em revistas científicas, nas quais, por meio da divulgação de suas ideias através de artigos ficará ele (re)conhecido no meio acadêmico de sua área. Só assim poderá, também, ser confrontado quanto ao pensamento apresentado. Porém, as exigências de qualidade são salutares apenas se todas as formas de pensamento forem permitidas, ou não haverá real confrontação. A manutenção do critério de rigor científico é vital para a qualidade das pesquisas e dos artigos delas resultantes. Todavia, se os seus "pares" não o reconhecerem como pesquisador sério por adotar outra vertente de pensamento, seus artigos tornar-se-ão somente texto aprócrifo do mundo científico. É, então, preocupante que divergências ideológicas possam ser usadas para "banir" alguém capacitado ou "proteger" maus cientistas.

 

Sobre a segunda indagação, antes de tudo precisamos admitir que vivemos constantemente sob o dilema "qualidade" x "produtividade" e, ainda, sob a influência de valores extrínsecos à pesquisa, mas diretamente responsáveis, em diversas ocasiões, pelos rumos que estas adotarão, tais como questões políticas, interesse social, investimento econômico, etc. Boas ideias, que muito podem contribuir para a produção de conhecimento podem não receber investimentos que oportunizem o seu desenvolvimento. Não é raro vermos professores e pesquisadores às voltas com "malabarismos" para manter um projeto em andamento. São eventos, minicursos, excesso de atividades - tudo para impedir que a pesquisa pare por falta de recursos. Nesse sentido, é preciso elogiá-los e aos discentes que conseguem perceber no árduo trabalho acadêmico de seus mestres, um exemplo de verdadeira ciência. Projetos universitários hoje premiadíssimos começaram, em diversos casos, com voluntariado de alunos e, de certa forma, dos próprios professores envolvidos, posto que as horas remuneradas e os recursos oferecidos pelas instituições ou pelas bolsas governamentais jamais teriam podido sustentar a ideia sozinhos. Em nosso caso, juristas cientistas ou juristas pesquisadores deparam-se, ainda, com a dupla depreciação de suas funções: diante do processo de desvalorização da educação e da cultura, comum na sociedade brasileira, e diante das demais carreiras jurídicas, cotidianamente apresentadas como sendo a única expressão efetiva do que seria uma "profissão jurídica".

 

Mas tanto empenho precisa equilibrar-se com a produção de artigos em publicações admitidas como científicas, que sofre dos problemas já mostrados. Interessante notar a análise de Latour e Woolgar sobre isso. Ante a necessidade de obter mais verbas para suas pesquisas, os cientistas devem comprovar uma cota mínima de produtividade anual e que não se refira a publicações comuns, mas em periódicos reconhecidos pelos seus pares como mais adequados e valorizados. Até esse ponto, nenhuma crítica, posto ser este um importante critério para garantir a qualidade, a exemplo da classificação Qualis, no Brasil. Mas os autores apontam alguns problemas que eventualmente ocorrem em razão dessa regra do grupo de cientistas sobre o que é "ser um bom cientista". O primeiro deles é a intermediação de caráter político que surge entre instituições e pesquisadores para garantir espaço em publicações bem conceituadas na área científica em que atuam - o reconhecimento pelos "pares". Como o nível das publicações se reflete no valor monetário de investimentos que se pode obter, as "trocas" entre colegas garante que pessoas de um mesmo networking sempre tenham acesso à publicações. Tal medida, além de restringir o espaço a quem ainda não se incluiu no sistema de "pares", cientificamente traz um segundo problema, a restrição do número de teorias e perspectivas estudadas. Para garantir-se entre os membros desse networking é preciso não pensar muito diferente do que já foi estabelecido e, assim, garante-se uma excelente e válida produção, contudo, de uma única forma de conhecimento.

 

Assim se pactua quais autores devem ser lidos, quais interpretações são mais aconselháveis, quem pode estabelecer o critério de verdade que deve nortear as pesquisas da área. Assegurar-se a qualidade é essencial, especialmente no Brasil, que pretende alcançar reconhecimento internacional em sua produção científica - muitos pesquisadores já o alcançaram por seu mérito e dedicação. Os critérios estabelecidos até agora têm sido de grande valia. Apenas aprendamos da lição de Latour e Woolgar para evitarmos criar um Olimpo nacional sobre o que é o direito. E tenhamos a coragem de valorizar "nossos pares", a "prata da casa". A diversidade de pensamento brasileira é rica e sua valorização deve ser compromisso de todos nós. Assim como outrora a sociologia no Brasil teve a coragem de, sem desprezar a rica fonte das teorias sociológicas originárias e suas sucedâneas, erigir-se sobre fundamentos e metodologias próprios, tenhamos a ousadia de produzir um pensamento jurídico verdadeiramente brasileiro.

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