Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica

Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica

ENSINO JURÍDICO NACIONAL

(Relatório do Encontro da ABMCJ em João Pessoa, no ano de 2003) 

 

O congresso nacional realizado anualmente, em Estado adredemente escolhido como sede, é o momento maior da ABMCJ. As associadas de todo o Brasil reúnem-se para repensar a razão de ser da instituição e, dentro das suas perspectivas finalísticas, traçar as futuras diretivas deste importante braço dos profissionais do Direito. Com muita propriedade, a ABMCJ/PB elegeu como tema “O Direito sob a ótica do Social”. A escolha traduz maturidade política e institucional, deixando claro que esta associação vem, ao longo dos anos, abandonando a visão assistencialista e clientelista, para inserir-se no papel de construção da cidadania, sem mais lugar para falar-se apenas em desigualdade de gênero. Abordaremos, nestes três dias de congresso, aspectos básicos da democracia, tais como,  igualdade substancial, justiça social e respeito a diversidade, em conceitos renovados e redesenhados pelos movimentos de transformação cultural, política, cientifica e econômica.

 

(...)

 

Questões políticas e econômicas atrasaram o desenvolvimento do Brasil em tudo, inclusive no campo do ensino universitário. Na década de 60, sofre a universidade a maior mutilação: tem o sistema de ensino em série substituído pela uniformização das disciplinas. Coube ao governo militar e ao Ministro da Educação, à época, o Dr. Jarbas Passarinho, fraturar a unidade da universidade brasileira, dela extirpando o ideal de vida acadêmica, aprendizado político, congraçamento e identidade entre os universitários. Foram destruídas as unidades de ensino com o objetivo de desagregar os grupos políticos que se formavam, de maneira espontânea, nos diretórios acadêmicos, espaço maior do despertar das vocações. A partir daí, o ensino de terceiro grau, público por excelência, esfacelou-se. E nos últimos trinta anos, a finalidade anunciada foi alcançada: nada restou da vida universitária. Desapareceu o celeiro de vocações políticas. Na década de 90, o governo Fernando Henrique Cardoso concluiu que os cofres públicos não mais poderiam bancar o ensino superior. Não havia recursos para atender aos investimentos que se faziam necessários ao reaparelhamento e à expansão da universidade pública, inteiramente sucateada, com sérios problemas de gerenciamento e corroída pela divisão e disputa de poder internamente.

 

Priorizando o ensino fundamental, optou o Governo Federal por abrir as portas do reprimido mercado à iniciativa privada. Não questiono a privatização, característica marcante do governo dos anos 90. A perplexidade fica por conta da abertura. Em primeiro lugar, os grupos privados que atenderam ao novo filão do mercado de serviços não se prepararam tecnicamente para a atividade do ensino universitário: têm exercido a tarefa de informar os alunos, com vistas ao mercado de trabalho. Sem preocupar-se com a formação de cidadãos e sem o compromisso com um projeto de Nação, a universidade transformou-se em um mercado de serviço, nada sobrando do espaço onde se desenvolvia a consciência moral da unidade nacional, celeiro de preparação da elite intelectual do País. O status da universidade caiu na bolsa de valores nacionais, ao tempo em que cresceu como mercado de serviço, cujo principal objetivo é a oferta de qualificação para o mercado de trabalho. Não se pode ignorar que, em países com avançado índice de formação universitária, há as faculdades profissionalizantes, que convivem com as que se dedicam à formação das reservas intelectivas.

 

O que não se pode aceitar é que esteja o ensino superior no Brasil dissociado do projeto de Nação, encaminhado em uma só direção. Os dois fatos destacados como marcantes demonstram que se desistiu não apenas de uma boa universidade pública, mas também do ideal de tornar-se o Brasil autônomo e desenvolvido. A formação de elites e a produção de conhecimento, seriamente abalados, tangem os brasileiros para o exterior, para os cursos de pós-graduação em universidades alienígenas, reinaugurando a prática do Brasil colônia e do Brasil império, em que a classe intelectual era formada no exterior, especialmente em Coimbra. Este fato histórico trouxe-nos como herança uma elite periférica, distanciada da cultura nacional, deturpada por hábitos alienígenas e que brigam, no dia-a-dia, com a nossa realidade. As instituições de ensino superior atuais, repito, direcionam-se para um objetivo claro: o comércio da educação profissionalizante e o lucro sem preocupação com a formação humanística. Em bem elaborado artigo publicado no primeiro trimestre deste ano, na Revista Conjuntura, o Professor Gorge de Cerqueira Leite Zarur denuncia que o modelo atual é o preconizado pelo Banco Mundial para o Brasil e outros países da África e da América Latina, o qual entrega o ensino universitário à iniciativa privada, cujo escopo precípuo é o lucro e cujo produto são profissionais de péssima formação humanística, com informações direcionadas unicamente à obtenção de espaço no mercado de trabalho. Diz o articulista na revista mencionada:

 

..., um diploma de formação superior está deixando de representar um atestado de formação para o exercício de uma atividade de profissional e tornando-se uma espécie de habilitação genérica para ingresso no mercado de trabalho: algo como um imposto pago a determinadas empresas educacionais, durante um certo número de anos, para que seja conquistado o direito de trabalhar.

(O Discurso Liberal e a Política de Expansão da Educação Superior no Brasil, fl. 44)

 

Os detentores do comércio de ensino tornaram-se os grandes negociantes da atualidade. O ensino de terceiro grau é hoje considerado uma das áreas de maior expansão do setor de serviços na economia brasileira. A velocidade dos ganhos foi de tal ordem, que, em uma década, formou-se, no Brasil, uma nova classe sócio-econômica, a de proprietários de instituições de ensino superior. Qual o papel do Estado, depois da privatização?

 

(...)

 

Dentro desse quadro de problemas na área do ensino superior, volta-se a preocupação maior aos cursos de Direito, com destaque para dois pontos. O primeiro, em razão de serem eles a escola de onde saem os juízes, os promotores, os consultores jurídicos, os procuradores, os delegados e quase 60% (sessenta por cento) dos políticos. Para o bom desempenho desses cargos, não é suficiente o conhecimento específico de seus integrantes. O comando da vida social do país exige dos profissionais profundo e respeitoso aprimoramento em cidadania, humanidade e sobretudo sensibilidade no trato com as pessoas e as suas problemáticas. O segundo ponto de aflição para os que se preocupam com a qualidade dos cursos jurídicos está na preferência dos mercadores da educação pelas faculdades de Direito. Afinal, para funcionarem, não dependem de laboratórios, instalações especiais ou professores que usem técnicas específicas. Ademais, é muito fácil recrutar professores entre jovens bacharéis que, embora sejam inexperientes advogados, falam razoavelmente o português e se comunicam com facilidade. Em contrapartida, satisfazem-se com baixos salários, complemento de seus ganhos. São os chamados “professores vaga-lumes”: de dia são advogados e à noite são professores.

 

(...)

  

A ilusão dos que optam pelo curso de Direito é grande, porquanto encontrarão uma profissão em declínio, cujos problemas, já diagnosticados, acusam: burocratização dos bacharéis; aumento dos advogados públicos; aumento dos advogados empregados; drástica diminuição dos profissionais liberais. O mercado de trabalho dos advogados está difícil, saturado e deteriorado. Em recente artigo, o advogado e jornalista Raul Haidar, fala do empobrecimento da classe: “os escritórios estão divididos em três categorias”:

 

a) bancas internacionais, onde alguns sócios enriquecem e os advogados jovens padecem;

b) bancas formadas por parentes de magistrados, por magistrados aposentados e eventualmente por altos funcionários da burocracia estatal, que se licenciam para defender os interesses das empresas às quais servem, e ;

c) finalmente, o “escritório de milagreiros”, os quais vendem façanhas, tais como, títulos da dívida pública do início do século, pagamento de tributos com precatórios, liberação de dívidas e obtenção de liminares e adverte, pessimistamente:

 

“Quem não consegue entrar nesses grandes escritórios, ou firmas, como muitos se apresentam, não tem parentes no Judiciário ou na burocracia estatal, se ainda tem nojo dos milagres ou como já disse Rui, ainda não sente vergonha de ser honesto, parece cada vez mais condenado à miséria, a menos que consiga matar diversos leões por dia”.

 

A crise não atinge apenas os advogados, mas a todos os atores jurídicos, bem como as instituições. Identificada a crise, o trabalho seguinte será o de estabelecer as causas, uma delas já identificada: a formação profissional. O Brasil, politicamente, está atrasado em suas realizações e com muita pressa no trabalho de recuperação do tempo perdido, mas ainda não perdeu o bonde da história. Daí a necessidade de assumirem as instituições o papel de agente transformador, cujo início está, sem dúvida, no ensino. A realidade aqui retratada serve para que possamos refletir, como profissionais da carreira, sobre o que fazer. Há sempre o que fazer, quando se sabe exatamente qual a direção a tomar. E, na descoberta de caminhos, quem melhor do que a mulher para enfrentar os grandes desafios? Respondo com segurança: melhor que a mulher serão os homens e as mulheres, de mãos dadas, para juntos enfrentarem os males do neoliberalismo, cuja força de mercado a tudo devora: sentimentos, nacionalidade, cidadania e juventude, tornando a todos escravos de um só senhor: o lucro.

 

João Pessoa, novembro de 2003.

 

 

https://www.stj.jus.br/internet_docs/ministros/Discursos/0001114/Ensino%20Jur%C3%ADdico%20Nacional%20(ABMCJ).doc