Cultura local

Cultura local

Mesmo reconhecendo a universalidade das normas legais aplicáveis no Estado brasileiro, o educador jurídico não pode furtar-se de ministrar suas aulas proximamente da realidade vizinha à sua IES, como dito ao falarmos sobre a importância da extensão nos cursos de Direito. Recorrer à cultura local permite um diálogo mais rico para as disciplinas propedêuticas, como também trará importantes contribuições às disciplinas mais técnicas (por exemplo, quantos aos contratos inominados, há formas específicas de algumas regiões do Brasil, como o "contrato do fica", na região do Pantanal). Os tribunais já há muito tempo são atentos às peculiaridades regionais no momento de decidirem, por isso tantos julgados distintos sobre casos aparentemente semelhantes, mas cuja especificidade local exige outro rumo decisório (v.g., retirar uma casca de árvore para fazer chá na Amazônia, em geral, recebe tratamento bem mais brando do que em Minas Gerais, onde há pouco tempo um senhor de oitenta anos foi preso por crime ambiental por fazer um chá para sua esposa enferma).

 

Estados como Pará e Mato Grosso têm tido verdadeira preocupação com a formatação dos conteúdos jurídicos de modo que possam ser ensinados e "partilhados", o que é melhor ainda, com as comunidades indígenas tão presentes em seus territórios. Para os grupos que estudam o Direito como literatura, sua concepção linguística e/ou os processos de formação de "discurso jurídico", a consideração da cultura é imprescindível. O Grupo de pesquisa da Profª Deisy Ventura faz um importante trabalho com os imigrantes em São Paulo e presenciam todos os dias situações de choque cultural, nas quais muitas vezes direitos básicos são violados. 

 

Assim, por razões óbvias, a educação jurídica de qualidade deve assegurar o respeito às culturas locais, inclusive se valendo delas para que o aluno compreenda o direito mais próximo da realidade em que irá atuar como profissional futuramente. São Paulo, Pará, Bahia, Tocantins, Distrito Federal, Santa Catarina, Sergipe, Acre, Minas Gerais, etc., todos estão sob a égide do mesmo ordenamento jurídico, mas a metodologia para transmiti-lo aos discentes e para estendê-lo às comunidades, didaticamente, jamais poderá ser a mesma, sob pena de, sob a falácia da universalidade, se ensinar com linguagem de grande centro urbano um conteúdo que será aplicado em vilas ribeirinhas de áreas de floresta. Não é uma questão de capacidade de compreensão ou leitura, mas, sim, de refletir as tipificações que os grupos locais criaram. Um exemplo bem simples: em Florianópolis, você contorna a rótula; em Minas Gerais, você circula a rotatória; em Tocantins, você vira no "queijinho". Heideggerianamente falando, não há "maturação" do Direito sem a sua inserção e dialética com o real, com as elaborações de sentido que denotam (e conotam) a construção do cabedal jurídico. Não consiste em uma redução da norma jurídica ao "particular".  O que se propõe, antes de tudo, é o uso de metodologias que:

 

1. Permitam que o direito posto seja assimilável e compreendido pelas comunidades com as quais a academia se compromete, a exemplo, das cartilhas sobre direitos humanos, em forma de cordel, distribuídas no interior do Ceará em projeto orientado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

 

2. Não confundam o saber técnico e o jargão jurídico com o "juridiquês", que muitas vezes não passa de pedantismo. Recomendo, aqui, a leitura do livro "Causos de um promotor de justiça", no qual Fernando Mário Lins Soares relata suas experiências vividas no interior do estado da Bahia durante sua atuação como representante do Ministério Público em diferentes comarcas.

 

3. Respeitem as diferenças. Furto é crime em todo o Brasil, mas nossa ética de "cidade grande" permite certos atos dentro da lei, que a ética índigena, por exemplo, jamais aceitaria, independente de estarem ou não previstos na lei estatal.

 

4. Engajem-se com o que o Brasil produz em todos os níveis de ensino superior. De nada adianta um mestrado ou doutorado feitos no exterior se não se consegue comunicar aos alunos o que se aprendeu; ou se, ao invés de um estudo comparado que valorize ambas as culturas confrontadas, trate a produção brasileira como conhecimento de segundo nível.