Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka

Ensino jurídico no Brasil: desafios para o conteúdo de formação profissional

(Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Instituição Toledo de Ensino, n.40, p. 421-437, ISSN n.14137100, Bauru-SP)

 

Está em curso, neste I Congresso Brasileiro de Ensino do Direito, uma nova discussão sobre os desafios do ensino jurídico no Brasil. Convém falar exatamente em desafios porque se se trata, aqui, de discutir os meios para recuperar ou implantar a qualidade dos cursos, o projeto não pode ser visto de outra maneira. Fazer, dos Cursos de Direito, cursos de alta qualidade tornou-se, no Brasil, um desafio. Oito anos após a Portaria MEC 1886/94, que “fixa as diretrizes curriculares e o Conteúdo mínimo do curso jurídico”, e seis anos após a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, pode-se dizer, para nossa surpresa, que lidamos mais com resultados negativos do que positivos no dito processo de modernização do ensino jurídico. Afinal, hoje, em lugar de comemorarmos as conquistas da reformulação obrigatória de currículos de graduação e pós-graduação, de seleção de docentes e discentes, da infra-estrutura de cada instituição de ensino superior, dos procedimentos e métodos adotados nos nossos Cursos, o que temos diante de nós é uma coleção de fracassos. É triste e é constrangedor falar de fracassos, ao invés de sucessos no nosso percurso universitário; mas não me cabe – e não nos cabe, a todos, aqui – maquiar a realidade, exatamente porque nosso centro de atenção e interesse é o de discutir, com a máxima seriedade, o tema da qualidade do ensino jurídico. Que fracassos, afinal, teriam sido esses?

 

Em primeiro lugar, penso que foi grande o nosso fracasso na contenção do número de cursos jurídicos, no Brasil. Este é um assunto que vem sendo denunciado constantemente – a exemplo de recente artigo do presidente da OAB/SP, Carlos Miguel Aidar, na Folha de São Paulo, de 04 de julho de 2002, denominado “O ensino jurídico brasileiro” – o número excessivo de cursos jurídicos impede a preservação da qualidade do ensino jurídico como um todo. Embora já se soubesse disso há muito tempo, a verdade é que o fascínio empresarial criado pelo impressionante sucesso mercadológico da transformação das Faculdades de Direito em franquias fez com que a maioria dos reitores e diretores dos Cursos de Direito enterrasse de vez a preocupação com a qualidade do ensino acima de tudo. Mais importante do que a qualidade do curso, mais importante do que a qualificação e capacitação dos professores e, acima de tudo, mais importante que a formação jurídica digna e suficiente dos alunos, tornou-se, nessa última década, efetivamente importante o lucro sobre essa mina de ouro em que se tornaram, hoje, os Cursos de Direito. Dos 400 Cursos de graduação em Direito existentes, hoje, no Brasil, uma significativa parcela não tem nenhuma qualidade. Prova disso – dentre outros tantos métodos de aferição – é o percentual de egressos que tais cursos ruins conseguem aprovar nos exames da OAB e, principalmente, nos concursos públicos para as carreiras jurídicas, como Magistratura ou Ministério Público. Esse percentual é, sempre, irrisório.

 

Este objetivo de caráter pragmático – passar no exame da Ordem e, depois, se for o caso, num concurso público para ingresso nas outras carreiras jurídicas – é, certamente, um objetivo muito importante e talvez mesmo o principal; de um modo geral pode-se dizer que alcançá-lo é o que todo acadêmico de Direito almeja, quando se dedica por anos aos seus estudos na graduação. Mas não é o único que pode ser alcançado com a graduação em Direito e, principalmente, não deve ser o único. Se, porventura, considerarmos, assim de modo tão pequeno, que a formação profissional deva oportunizar – apenas e minimamente, e como os únicos objetivos dignos de todo esse esforço – o ingresso do graduado no exercício da advocacia ou lhe garantir a possibilidade de aprovação em concurso público, então poderemos ter a mais viva certeza de que já fracassamos outra vez, seja na formação dos acadêmicos, seja, já, na construção dos profissionais do Direito... Dezenas de Faculdades de qualidade duvidosa, espalhadas pelos maiores e mais destacados centros brasileiros de consumo, certamente estão preocupadas apenas com esse objetivo, o que revela, a priori, uma inquietante preocupação, diretamente resultante deste primeiro fracasso do sistema.

 

Um segundo fracasso, que também pode ser percebido desde logo, diz respeito à qualidade do próprio ensino jurídico que tem sido ministrado em alguns dos mais sintomáticos e problemáticos Cursos de Direito, no nosso país. A pergunta que sempre instiga e inquieta é aquela que indaga a respeito das razões que obstam o processo de fechamento das instituições de baixa qualidade de ensino. Por que essa morosidade? Por que esse aparente temor? O que há, no reino da educação brasileira, que parece ter tanta complacência ou condescendência com situações francamente alarmantes? É certo que, em casos drásticos assim, o que se objetiva absolutamente não é o investimento na formação acadêmica e universitária ou no trabalho científico, mas unicamente se objetiva a conquista de um amplo mercado consumidor de diplomas. É sofrido dizer, mas é a verdade, infelizmente. Nesse ambiente de interesse estritamente mercadológico, alunos mal selecionados convivem com professores contratados sem qualquer critério e que não constituem, na maior parte das vezes, um núcleo docente bem preparado e livremente engajado no desenvolvimento da própria estrutura acadêmica do curso. Será exagero? Paremos para observar se não é assim, procurando responder a estas mais que simples perguntas: Quantos são os professores de Direito que, no Brasil, podem se dar ao luxo – já que, aqui, isso se tornou um luxo – de se dedicar à pesquisa? Quantos são os professores de Direito que, para além de suas outras carreiras profissionais, podem buscar excelência também, ou principalmente, na carreira docente? Quantos são os professores de Direito que se mantêm devidamente atualizados com respeito a tudo de relevante que se publica ou se discute, no Brasil e no mundo, em suas áreas específicas? Quantos são os professores que têm condições academicamente dignas de trabalho dentro das Faculdades de Direito e Universidades às quais pertencem? A resposta é simples e rápida, não deixando resquício de dúvida: apenas uma absurda minoria de professores se encontra nesta privilegiada situação, por vezes mais beneficiada pela sorte pessoal do que pela estrutura da instituição à qual pertencem.

 

Há bem pouco tempo, expandiu-se, no Brasil, a exigibilidade de mestrado ou de doutorado para os docentes de Direito. É verdade que desde que essa obrigatoriedade surgiu, veio, com ela, uma torrente de dissertações de mestrado e teses de doutoramento, fato que foi decisivo para incrementar a performance quantitativa da educação superior brasileira, especialmente diante da fiscalização dos órgãos  internacionais de cultura, ensino e principalmente investimento econômico. Mas também é verdade que essa fluência súbita, e por vezes irregular, de textos acadêmicos revelou a grande inexperiência da maioria dos nossos professores com a pesquisa científica. Sob o cuidado de observar – não os números dessa estatística, o que tem sido mostrado amiúde – mas o conteúdo da produção por ela representada será possível encontrar um festival de textos mal escritos, incompletos, desarticulados, e até irrelevantes. As razões de um resultado assim podem ter assento em inúmeros fatos, mas certamente também no fato de ter sido, a produção científica e intelectual de nossos docentes, submetida – ou por seus empregadores ou pelas agências de financiamento – a prazos impossíveis de serem cumpridos com seriedade e excelência. Num ambiente educacional de intenções mercadológicas – no qual se busca, prioritariamente, a constante ampliação dos lucros e a preservação da empresa a qualquer custo – o cuidado e a atenção para com a ampliação da liberdade científica e a preservação da qualidade universitária, é assunto de segundo turno. Em ambiente assim – é difícil dizer – não se exige, dos professores, que tenham a melhor qualidade científica ou docente; exige-se, apenas, que funcionem como instrumentos de uma grande máquina empresarial cujos objetivos, no mais das vezes, se encontram desvinculados da preocupação com o melhor ensino jurídico, ou com a melhor relação entre ensino e aprendizagem. Infelizmente, em tantos casos, é assim. (...)

 

Trecho da palestra proferida no I Congresso Brasileiro de Ensino do Direito – “O Projeto Pedagógico e as Diretrizes Curriculares – Para preservar os padrões de qualidade”, em conjunto com o III Seminário de Direito do INEP/MEC (sobre Avaliação), pela primeira docente, na cidade de Natal, no dia 08 de agosto de 2002. O referido Congresso foi promovido pela ABEDi – Associação Brasileira de Ensino do Direito. Disponível em: https://www.ite.edu.br/ripe_arquivos/ripe40.pdf.