Eneá de Stutz e Almeida

Eneá de Stutz e Almeida

O ensino da história do direito 

 

O ensino jurídico é motivo de grande preocupação, em especial das disciplinas relacionadas às fontes históricas do Direito. Particularmente, a partir de uma experiência profissional, pode-se constatar que essas disciplinas são ministradas sem o devido prestígio por parte tanto do corpo docente quanto discente. A par disso, pretende-se, na pesquisa de tese, focalizar aspectos da trajetória intelectual e política do Instituto dos Advogados Brasileiros. Por isso mesmo, inicia-se o texto tecendo considerações em torno do ensino da disciplina História do Direito nos cursos jurídicos, com a atenção voltada tanto para o regime docente e a postura dos profissionais, quanto para a situação académica do alunado; ora buscando as causas de seu desinteresse pelo assunto, ora assinalando as possibilidades de que tal situação possa vir a ser revertida.

 

Num segundo momento, discute-se brevemente alguns temas sobre a questão dos marcos teóricos no domínio da historiografia do Direito, com destaque para a crise da racionalidade e a busca de novos paradigmas, por sinal, inerentes à transição de século e de milénio ora vivenciada. O terceiro e o quarto itens remontam à história brasileira, especificamente sobre os aspectos do patrimonialismo e do bacharelismo. Considera-se oportuno ressaltar esses dois fenómenos que, além de históricos, vinculam-se diretamente com nossas preocupações a respeito do ensino jurídico e da cultura jurídica nacional. Procura-se explicar brevemente o que são esses fenómenos e, logo após, apresenta-se considerandos a respeito das influências que tais fenómenos exerceram e ainda exercem sobre a cultura jurídica nacional. Finalmente, a título de considerações finais, apenas sublinha-se que no terreno do ensino jurídico essa problemática ainda se encontra em fase embrionária e se constitui, mais que nada e acima de tudo, num monumental desafio, a ser enfrentado com empenho intelectual e aprofundamento acadêmico.

 

1. Quem tem medo da História do Direito?

 

É consenso entre os estudiosos que ninguém pode ter uma visão nítida da Ciência do Direito sem uma sólida base histórica. Entretanto, assim como acontece com outras disciplinas, como é exemplo a Sociologia Jurídica, o estudo da História do Direito não é muito prestigiado entre os operadores do direito no Brasil. Essa disciplina tornou-se mais presente nas grades curriculares dos cursos de Direito apenas após a fixação dos currículos mínimos para os cursos jurídicos, estabelecidos por meio da Portaria do MEC n.° 1886/94. Tal revisão curricular proposta pelo MEC e auspiciada pela OAB fez com que muitos cursos inserissem em seus programas a História do Direito ou, pelo menos, a História do Pensamento Jurídico. Entretanto, no momento de traçar o perfil académico dos profissionais que deveriam ministrar essa disciplina, ou ela recairia para historiadores, ou para aqueles chamados “professores multi-uso”, isto é, docentes que, enquanto não encontram vaga nas cadeiras “verdadeiramente importantes” do plantel das disciplinas dogmáticas, desempenham papéis menores.

 

Em verdade, poucos são os professores nos cursos de Direito que se inclinam interessadamente para essa área. Acrescente-se a isso a circunstância de que também os alunos, em sua maioria, guardam certo desprezo pelo assunto. Porque isso ocorre com tanta freqüência? Parece que existe um certo receio, não infundado por sinal, em estudar a História do Direito. Como qualquer estudo histórico, muitas são as interpretações possíveis. A despeito de serem condenáveis, muitas das interpretações podem vir a ser estanques, lineares e infradotadas de vinculação com a realidade. Tais interpretações adentram facilmente para o terreno das distorções, ao sugerirem uma certa modalidade de “adivinhação”, ou seja, quando, em desespero de causa, recorrem a uma pretensa justificativa “prática” para a disciplina: estudar o passado apenas para produzir boas projeções.

 

Tanto numa quanto noutra hipótese, percebe-se o desprezo e a insegurança quanto à possível aplicabilidade dos conteúdos. Afinal, perguntam os alunos, para que serve o estudo da História do Direito? Onde aplicá-la em suas petições e requerimentos, salvo como ilustração? Lamentavelmente, a mediocrização do ensino jurídico conduziu a esse tipo de indagação. A presumida necessidade do uso imediato e utilitarista do conhecimento adquirido seria a chave para a valorização do objeto de estudo. Portanto, se os conteúdos não forem aplicáveis nos afazeres profissionais cotidianos, pertenceriam ao patamar do mero diletantismo. No Brasil, por imposição do regime autoritário, durante mais de quinze anos o estudo da História foi banido do ensino fundamental e, substituído por uma disciplina conveniente e desinteressante - os assim chamados Estudos Sociais. Assim, toda uma geração foi formada guardando um significativo desprezo pelo estudo da história. Contudo, a despeito do preconceito existente, está comprovado que as novas gerações são capazes de captar o potencial enriquecedor e esclarecedor dos estudos históricos e, por extensão, da História do Direito.

 

Na verdade, pode ocorrer até mesmo uma espécie de “paixão à primeira vista” entre os estudantes e a disciplina. Para tanto, todavia, torna-se imprescindível uma “interpretação crítico-dialética da formação e evolução das fontes, idéias norteadoras, formas técnicas e instituições jurídicas”, como afirma o professor Wolkmer numa das epígrafes de sua obra1, em lugar das visões lineares e até adivinhatórias que sustentam muitos. Afinal de contas, questionar o conhecimento dogmático e tentar introduzir uma visão sócio-política da historicidade jurídica, desmitificando o Direito por meio da reordenação metodológica e da inserção da interdisciplinaridade, é uma medida que desagrada àqueles que gostariam de manter o historicismo legal, formalista e elitista. Este, não retrata as rupturas, crises, conflitos e transformações sociais. Trata-se de uma perspectiva jurídica “pacífica” e “inofensiva”. Indicar os avanços e recuos que desde os primórdios marcaram a trajetória de nossa história social, significa afirmar que mudanças podem devem ocorrer. Este corte epistemológico transforma a “compreensão historicista do Direito num sentido social e humanizador” e por isso mesmo, pode tornar-se fascinante.

 

Um problema adicional é a aversão tanto pelas questões locais, quanto pela revisão da história nacional. Assim, por exemplo, principiar pelo estudo da riqueza do direito nas civilizações pré-colombianas é considerado, no mínimo, exótico. Isto porque, tal compreensão histórica tem como viés a transformação presente das instituições jurídicas, além do fato de alargar os horizontes por meio da devida valorização daquilo que aconteceu e acontece ao nosso redor, independente da visão construída pelos invasores europeus. Sabe-se que a cultura jurídica dominante é caudatária em demasia do pensamento europeu, posto que lhe confere, em consequência do vezo ideológico, uma suposta superioridade. Este “perfil liberal-conservador”, mais uma vez utilizando expressão cunhada pelo professor Wolkmer, retrata não só as instituições jurídicas brasileiras, mas também os obstáculos aos estudos de História do Direito nesse viés transformador aqui postulado. Considerando que novos horizontes ideológicos podem revelar-se perigosos para os interesses dominantes, faz parte de uma estratégia disseminar a “inutilidade” e o “exotismo” do estudo da História do Direito, evitando tanto o despertar de “paixões” por parte do corpo discente, assim como evitar a redescoberta e a revalorização das histórias continental e pátria.

 

Entre outras razões, o desprezo das elites pela nossa própria história, com honrosas exceções, conduziu a uma cultura jurídica nacional hegemonicamente comprometida com o formalismo individualista e antidemocrática, considerando-se o quadro de desigualdades sociais que nos caracteriza. Assim sendo, torna-se uma tarefa monumental a correção de rumos na produção e no ensino da História do Direito brasileiro. Isto se traduz pela reduzida literatura circulante em perspectiva transformadora. Cabe nesta altura uma consideração metodológica. Duas das maiores virtudes brasileiras, plasmadas pela miscigenação do nosso povo, são a criatividade e a espontaneidade. Ambas, reconhecidas e invejadas por muitos de nossos colegas juristas dos países ricos, são depreciadas por aqui, justamente por não seguirem estritamente os cânones metodológicos da tradição académica estrangeira, a qual, segundo a ideologia jurídica brasileira, deveríamos simplesmente reproduzir. Basta constatar o modo da transmissão de conhecimento de que se faz uso na maioria dos cursos de Direito, e que consiste num tipo de reprodução cuja finalidade precípua é a manutenção do modelo dito liberal-conservador.

 

A quem interessa uma História do Direito? Na verdade, interessa a todos que desejam expandir a consciência crítica. Os obstáculos erigidos à consolidação desse saber decorrem da possibilidade – aterrorizante para muitos – de que uma disciplina apresentada no quadro académico atual como sendo periférica e até mesmo “pré-jurídica”, possa vir a se constituir como um precioso subsídio na transformação jurídica e social, por meio do desvelamento das graves contradições e das muitas ficções ideológicas, por muito tempo, cuidadosamente camufladas no âmago da ordem jurídica reinante. Uma hipótese é que torna-se impossível para alguém deparar-se com a História do Direito (geral e do Brasil), e não sentir-se envolvido numa profunda experiência de sensibilização e mobilização. Ainda que as pessoas não contemplem a História do Direito como prioridade em seus estudos, ficarão certamente fascinados ao descobrirem as novas possibilidades intelectuais e existenciais de uma re-leitura da história, sobremodo numa perspectiva críticodialética. Depois dessa descoberta, para qualquer estudante ou pesquisador, torna-se impossível voltar atrás e fingir que nada aconteceu. Resta dizer que a sensibilização e a mobilização despertadas pela História do Direito podem ser perigosas e inconvenientes, posto que encaminham para uma postura cada vez mais democrática. Afinal de contas, é parte integrante da socialização do conhecimento demonstrar que a história é marcada por avanços e retrocessos, cabendo, sobretudo às novas gerações, investir nos avanços qualitativos. Em outras palavras, é possível a criação ou a invenção de novas interpretações da História do Direito, criativas, espontâneas, e genuinamente brasileiras. No entanto, vale insistir, a participação das pessoas em processos transformadores pode representar uma ameaça ao stablishment, jurídico ou não.

 

Texto integral disponível em:

https://www.periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/viewFile/15435/13998