Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches

Samyra Haydêe Dal Farra Naspolini Sanches

O ENSINO JURÍDICO COMO REPRODUTOR DO PARADIGMA DOGMÁTICO DA CIÊNCIA DO DIREITO 

(Excerto do artigo publicado nos anais do CONPEDI: https://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/manaus /ensino_jur_samyra_n_sanches.pdf

 

 

O Ensino Jurídico no Brasil apresenta sérios problemas desde os seus primórdios. Vários autores brasileiros têm-se ocupado do tema e dirigido a ele críticas que vão desde a sua metodologia até o próprio conhecimento que é disseminado em sala de aula. O foco principal deste trabalho, porém, é o Ensino Jurídico, voltado para o estudo exclusivo da Ciência Jurídica com o seu paradigma dogmático. A Dogmática Jurídica é uma forma de conhecimento teórico e prático acerca do “Direito” predominante no mundo europeu e espalhado pelo mundo em virtude do colonialismo e após o advento do Estado Moderno. Caracteriza-se pela “aceitação da normatividade revelada nas expressões semiológicas do direito, em especial no discurso normativo da legislação, como ponto de partida e núcleo de convergência dos respectivos atos de conhecimento.” Trata-se de um saber que irá eleger a norma jurídica como o seu objeto de estudo científico, e não irá além dela. Consubstancia-se num tipo de conhecimento que tem por objeto o direito identificado nas normas jurídicas. A partir da análise das bibliografias adotadas nos cursos, mais especificamente dos Compêndios ou Manuais, buscarei demonstrar que as Faculdades de Direito atuam no sentido da reprodução e conseqüente produção do paradigma dogmático de Ciência Jurídica, colmatando o que WARAT denominou de “sentido comum teórico dos juristas.”

O estudo crítico da Dogmática Jurídica demonstrou que a mesma não se limita a uma atividade de conhecimento descritiva e nem ideologicamente neutra, como defende KELSEN, mas realiza uma atividade prescritiva. Nesta linha de raciocínio, a sua neutralidade ideológica é, de fato, um efeito das teorias juspositivistas que lhe permitirá situar-se como “instância orientadora das decisões do judiciário mas, como Ciência neutra e distanciada dos conflitos reais”. Com esta idéia a Dogmática acaba “apresentando como descrição o que na verdade é prescrição”. Ou seja, na realidade a Dogmática não se limita somente a um enfoque sistemático, neutro, objetivo e determinado das questões fundamentais da Ciência do Direito, “ela também representa uma atitude ideológica que lhe serve de base e um ethos cultural específico.” Segundo o entendimento de FARIA, “O resultado desse conhecimento alienante é conhecido: a formação de uma conjunto de idéias gerais, proposições falsamente científicas, juízos éticos e pontos de vista hegemônicos, todos contribuindo para a consolidação de um discurso aparentemente objetivo e técnico, ideologicamente depurado e capaz de provocar efeitos de realidade e coerência, de projetar uma dimensão harmoniosa das relações sociais e de justificar a imposição de um padrão específico de dominação com base na ‘natureza das coisas’”.

A Dogmática também influi decisivamente na definição dos “verdadeiros” problemas da Ciência do Direito e nos seus possíveis equacionamentos, não se resumindo a descrever o Direito Positivo, mas sim “prescrever o que há de ser considerado como direito.” É deste conteúdo que são formados os livros e manuais de Direito existentes no Brasil, ou seja, uma Ciência Jurídica que ao reduzir o seu objeto de estudo à norma válida, também identifica nesta norma o próprio Direito. Segundo a subdivisão criada por AGUIAR e RODRIGUES, as críticas dirigidas ao paradigma epistemológico do Ensino Jurídico brasileiro têm considerado este problema como um problema de estrutura que vem acompanhado de uma série de outros problemas, funcionais e operacionais, que fogem ao escopo do presente trabalho. Os conceitos acerca do Direito e da Ciência Jurídica, encontrados nas principais bibliografias de renomados juristas e utilizadas pelos docentes nas diversas disciplinas dogmáticas do Curso de Direito, demonstram que as Faculdades de Direito reproduzem o paradigma dogmático de Ciência Jurídica e o senso comum teórico dos juristas, uma vez que o estudo dos diversos ramos do Direito, limita-se ao estudo das normas contidas nos Códigos, que compõem inclusive o próprio conteúdo programático dos planos de ensino. 

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Assim, o Direito é identificado com a norma jurídica estatal e a sua ciência com uma simples técnica de controle social. Por estes motivos, o estudo dos diversos ramos do Direito, nas disciplinas distribuídas ao longo da grade curricular dos cursos jurídicos, limita-se ao estudo dos Códigos, que compõem, inclusive, o próprio conteúdo programático dos planos de ensino que se limitam a transcrever os índices dos códigos.

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Se o dogmatismo da Ciência Jurídica e o dogmatismo do Ensino Jurídico vivem uma relação de retroalimentação, perpetuando o senso comum teórico dos juristas, o que inclusive tem agravado as suas crises, penso que uma mudança a partir do Ensino Jurídico poderia refletir em uma mudança na Ciência Jurídica. Rompendo o elo de retroalimentação entre eles, ao modificar-se o Ensino Jurídico, poder-se-ia fomentar a mudança de paradigma da própria Ciência Jurídica.

Poder-se-ia iniciar combatendo a redução do Direito à norma formalmente válida. Assim, o ordenamento jurídico poderia ser trabalhado como um construído concreto, histórico e cultural, um conjunto de regras em movimento, sujeito a contínua produção e reprodução, onde têm espaço as forças extra-legislativas e extra-estatais. No que se refere ao currículo, ao invés de disciplinas que repetem o padrão dos códigos, os conteúdos poderiam ser estudados agrupados em grandes temas, ou por meio de casos, abordados de forma interdisciplinar, contribuindo assim para a construção de um novo objeto para a Ciência Jurídica.

A interdisciplinaridade, ao contrário do que alguns Cursos têm tentado incrementar, não se realiza em um conjunto de disciplinas estanques e metodologicamente colocadas nas grades curriculares, o que na realidade se constitui em multidisciplinaridade. Ela se caracteriza pela análise do objeto de estudo a partir de vários ramos do conhecimento em um mesmo momento, buscando apreender todos os aspectos desse objeto, em sua integridade. Penso que, somente por meio da abordagem interdisciplinar, o fenômeno jurídico poderá ser apreendido pelo estudante de Direito como algo além da norma jurídica válida. O tripé ensino, pesquisa e extensão também não pode ser negligenciado, cabendo à pesquisa o papel de ampliar o horizonte de pensamento do estudante e à extensão o papel de propiciar-lhe o conhecimento da realidade que o cerca e desenvolver o seu compromisso de atuação na mesma.