A alteração das normas jurídicas pela via não legislativa

15/09/2010 11:42

(Excerto de artigo completo apresentado na tarde de ontem no 3º Congresso "Constituição e Processo" organizado pelo Instituto de Hermenêutica Jurídica e realizado na Faculdade de Direito da UFMG)

 

(...)

 

Se contemplado em sua continuidade histórica e nos valores inerentes ao ser em geral, que asseguram a sua permanência independentemente de existir ou não proteção legal, o direito positivo somente se concretiza (continuamente) se respeita o seu fundamento de verdade, que não é a norma em si. Por exemplo, os direitos humanos fundamentais persistiriam mesmo que o Estado brasileiro os houvesse esquecido ou desprezado na sua legislação. O que se teria prejudicado naquele contexto por tal esquecimento seria a sua efetividade para os sujeitos que ali estivessem, não o seu fundamento, fruto da maturação do ser ao longo do tempo. Entretanto, poderia o Poder Judiciário, em razão dessas prerrogativas essenciais dos indivíduos, agir politicamente para defendê-las ante uma possível inércia, como dito por Zagrebelsky, que in casu causada pela omissão do Poder Legislativo? Essa questão toca em dois dispositivos constitucionais:

 

Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988:

 

 

 

 

Art. 2º - São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

..................................

 

Art. 49 - É de competência exclusiva do Congresso Nacional...

XI – zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes

 

 

Esses dispositivos refletem a vocação ideológica da Carta Constitucional brasileira de 1988 (BESTER, 2005, p. 10), cujo texto estava imbuído do contexto redemocratizador que permeou a Constituinte de 1986-1987, fruto do um longo processo de abertura da política nacional. Parece-nos inevitável pensar que depois de tantos anos de lutas e empenho das comunidades locais e dos movimentos sociais, quer no campo ou nas cidades, a Constituição desse país não refletisse as polêmicas que permeavam o dia a dia dos brasileiros, como garantias trabalhistas, emancipação feminina, proteção à infância e à terceira idade, uma ordem econômica mais justa, ente outras questões. Mas a garantia textual desses direitos não repercutiu com a mesma intensidade no cotidiano dos cidadãos, razão pela qual se questiona a concretude das legislações a partir de então promulgadas e a legitimidade da intervenção do Judiciário para efetivar políticas públicas carentes dessa efetividade do texto legal.

 

O texto constitucional pátrio dedicou-se a assegurar princípios universais de suma relevância, v.g., o caput do artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes” (grifo nosso). Mormente os três primeiros, representam valores considerados inatos a toda sociedade justa, e sua conceituação é importante para que se possa aferir a extensão das garantias que oferecem aos cidadãos, embora se deva dizer que o conceito de “justo” também precise de definição. Este deve ser elaborado evitando-se o sentido apenas metafísico de Kant e Platão em que esses direitos representam valores universais que transcendem às singularidades e, nesse sentido, distanciam-se da contemplação da realidade.

 

Por outro lado, igualmente não convém uma modalidade de justiça utilitarista que se imiscuísse com as atribuições de outros Poderes, pois separação entre eles também é uma garantia constitucional de relevo que cumpre ser defendida. Mais acertado é o modelo da filosofia heideggeriana, que refuta o pragmatismo atribuído ao da-sein no mundo fenomênico e recusa a dicotomia entre o valor transcendental e o sentido maturado no contexto, pois eles estão entrelaçados. Sendo o direito é fato, valor e norma (REALE, 1991, p. 194) e a norma jurídica aplicada sem a presença de seu fundamento se torna mero tecnicismo, usa a técnica apenas em sua instrumentalidade e não em sua essência. A técnica não é, portanto, um simples meio... é uma forma de descobrimento. (HEIDEGGER, 2002, p. 17)

 

“Dalla modernità abbiamo imparato che la tecnica rappresenta un fenomeno non completamente analizzato nella sua essenza. Tutta la filosofia del Novecento si è interrogata in modo approfondito sulla questione della tecnica e lo stesso Heidegger - uno dei più significativi filosofi del nostro secolo - si domandò quale fosse la sua essenza. Ritengo che a tale interrogativo non sia ancora stata data una risposta convincente. Per quale motivo la tecnica ha la capacità di rendersi autonoma dai suoi creatori? Perché può divenire indipendente dalla nostra volontà? Com'è possibile che si determini questa sproporzione tra la volontà umana e il mondo dei prodotti da essa creati? La divaricazione tra tecnica e cultura è un tema centrale della nostra epoca. (MARRAMAO, 1999, [documento eletrônico])”

 

Essa noção exposta por Heidegger e Marramao, como mencionado no parágrafo anterior, também está expressa no acórdão n. 1.0024.03.163240-9/002, proferido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais em 2005. Nesta decisão, a colenda corte dignou-se julgar ação civil pública em defesa de direitos coletivos quanto à vida e à saúde, todavia sem subssumi-los a um contexto contingencial – conforme os desembargadores, da mesma natureza de uma política pública –, o que não seria, como declarado pelo relator, papel do Poder Judiciário. Transcreveu-se parcialmente a decisão a seguir:

 

 

Relator:

BRANDÃO TEIXEIRA

Data do Julgamento:

01/03/2005

Data da Publicação:

18/03/2005

 

APELAÇÃO CÍVEL/REEXAME NECESSÁRIO Nº 1.0024.03.163240-9/002

COMARCA DE BELO HORIZONTE

APELANTE(S): ESTADO DE MINAS GERAIS

APELADO(A)(S): MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS

 

ACÓRDÃO

Vistos etc., acorda, em Turma, a SEGUNDA CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, EM REEXAME NECESSÁRIO, REFORMAR A SENTENÇA.

Belo Horizonte, 01 de março de 2005.

 

O SR. DES. BRANDÃO TEIXEIRA:

VOTO

Cuidam os presentes autos de recurso de apelação e de reexame necessário da v. sentença prolatada nos autos da ação civil pública movida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS contra o ESTADO DE MINAS GERAIS, que julgou procedente o pedido, para determinar à Secretaria de Estado da Saúde que forneça aos pacientes do SUS, portadores de asma grave, presentes e futuros, nos termos da prescrição médica, os medicamentos beclometasona, budesonida, fenoterol, formoterol, salbutamol e salmeterol, na quantidade indicada pelo médico requisitante, de acordo com as determinações do protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para tratamento da asma grave (fl. 351/364).

Inconformado, insurge-se o ESTADO DE MINAS GERAIS contra a sentença, argüindo que o MINISTÉRIO PÚBLICO não teria legitimidade para propositura de ação civil pública visando compelir o Estado a fornecer medicamentos aos pacientes portadores de asma grave, que venham necessitar dos mesmos. Sustenta que os direitos tutelados não se caracterizam como difusos ou coletivos, não havendo indeterminação ou indefinição de seus titulares, já que os portadores de asma grave representam um número limitado, determinado e identificável de doentes, não abrangendo toda a coletividade. No mérito, alega que o fornecimento de 03 dos medicamentos selecionados é suficiente para atender às necessidades da população, bem como aos princípios da economicidade e racionalização das despesas públicas. Alega que "se, individualmente, os medicamentos selecionados deixassem de apresentar eficácia para determinado paciente, poderia o mesmo pleitear a sua substituição por outro, se fosse o caso", não havendo como deferir tal direito de forma ampla e genérica, através de ação civil, sem comprovação da ineficácia do processo seletivo efetuado pelo apelante. Diz que realizou uma série de estudos junto a especialistas da área de saúde, em razão dos quais foram selecionados os medicamentos budesonida, formoterol e salbutamol, seleção esta que abrange os dois grupos de medicamentos utilizados no tratamento da asma grave: os corticóides inalatórios e os agonistas beta 2 adrenérgicos. Por fim, requer, na eventualidade de ser mantida a decisão, que o fornecimento fique restrito aos pacientes que se tratam integralmente pelo SUS, que possuam receita de médico cadastrado junto ao sistema e que comprovem renda inferior a 15 salários mínimos, vez que o SUS visa o atendimento do cidadão carente (fl. 366/389).

(...)

O Estado deve satisfazer as prestações a que está obrigado, por imposição constitucional, para garantir a dignidade da pessoa humana, devolvendo-lhe sua cidadania. Mas o conteúdo desta prestação não pode ser determinado pelo Poder Judiciário, em respeito ao princípio republicano e à independência dos Poderes. O Poder Judiciário poderá, até, determinar condutas que garantam a aplicação imediata daqueles direitos, mas esta determinação deve observar os limites e os princípios definidos na Constituição e na legislação, sob pena de, insista-se, inaceitável agressão ao princípio da separação dos poderes. Diga-se mais: mesmo se admitindo que a atual ordem constitucional confere ao Poder Judiciário realizar o controle de conformidade dos atos da administração (inclusive nos casos de omissão), tem-se que tal controle somente pode ser realizado em casos em que a Constituição é explícita ao determinar a validade de suas normas, sem necessidade de uma lei intermediária que lhe confira execução. Valendo dos conceitos de RONALD DWORKIN, o Poder Judiciário deve tomar decisões de princípio, não de política, ou seja, decisões sobre que direitos as pessoas têm sob o sistema constitucional e não decisões sobre como se promove melhor o bem- estar social. Por isto, não pode o Judiciário determinar que o Poder Legislativo edite normas neste sentido ou que o Poder Executivo tome esta ou aquela decisão, dentro de sua discrição. Pode até rever e controlar os atos daqueles poderes que se distanciem dos sistemas e das normas diretivas existentes, mas não pode definir as normas ou as decisões que devem ser tomadas, em substituição àqueles.

 

CONCLUSÃO.

Com tais considerações, REJEITO A PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO E, NO MÉRITO, E EM REEXAME NECESSÁRIO, REFORMO A V. SENTENÇA MONOCRÁTICA, PARA JULGAR IMPROCEDENTE O PEDIDO INICIAL.

Pelas mesmas razões e para os mesmos fins, DOU PROVIMENTO ao recurso interposto pelo EMG.

O SR. DES. CAETANO LEVI LOPES:

VOTO

De acordo.

O SR. DES. FRANCISCO FIGUEIREDO:

VOTO

De acordo.

SÚMULA: EM REEXAME NECESSÁRIO, REFORMARAM A SENTENÇA.

 

 

O que a jurisprudência em análise revela é que à hermenêutica hodierna se apresentam dois desafios, como relata Cambi. Em primeiro lugar, é preciso superar a era do silogismo judicial, pois a sujeição do fato ao tipo legal não é suficiente para demonstrar sua normatividade, já que esta se revela para além da letra da lei e da mera adequação lógica a uma premissa maior, sem considerar fatores extrínsecos. Tendo em vista o problema atual da justificação da aplicação das normas, enfrentado diuturnamente pelos magistrados, observa-se que a “lógica dedutiva somente oferece critérios de correções formais, não se preocupando com o conteúdo das normas jurídicas e o resultado de sua aplicação social” (CAMBI, 2010, p. 119). As decisões judiciais devem, hoje, ser fundamentadas por meio de um processo argumentativo dialético que considere o pluralismo que caracteriza nossas sociedades.

 

O segundo desafio é o ativismo judicial irresponsável. Embora a hermenêutica jurídica de agora se estabeleça sobre uma base argumentativa, nem por isso deve fugir aos corolários do Estado de Direito instituídos pela Constituição – como citamos antes, um deles é a separação de poderes –, uma vez que, do contrário, ofender-se-ia o princípio da segurança jurídica. É preciso manter “los pies en la tierra y no la cabeza en las nubes” (ZAGREBELSKY, 2005, p. 122). Tal linha de pensamento explica a posição doutrinária assumida pelos três desembargadores que julgaram o acórdão supracitado. Nesse sentido, Cambi esclarece:

 

“A cláusula da reserva do possível merece uma leitura peculiar em países de modernidade tardia, como é o caso brasileiro. Deve servir de mecanismo de mitigação do ativismo judicial irresponsável, sem se transformar em obstáculo jurídico à realização dos direitos fundamentais sociais. Não seria razoável uma decisão judicial que determinasse a construção de milhões de casas populares imediatamente... cabe ao Judiciário primar pela tutela do mínimo existencial, acolhendo pretensões relacionadas à execução de políticas públicas específicas, socialmente necessárias e constitucionalmente exigidas (CAMBI, 2010, p. 487-488)

 

No acórdão que aqui serve de exemplo, a aplicação do princípio da reserva do possível não ofende as pretensões sociamente necessárias e constitucionalmente exigidas da vida e da saúde dos pacientes com asma porque não houve omissão estatal. O mínimo determinado em lei foi cumprido, pois um medicamento adequado ao tratamento, embora genérico, constava da lista de medicamentos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Na época da decisão judicial, considerando a Lei Orçamentária estadual, não seria possível esse incremento de despesa. Isso não impede, porém, a nova propositura da ação no futuro, se este mínimo deixar de ser ofertado ou se tornar insuficiente para atender às necessidades humanas e sociais: "...tudo aquilo que interfere, de forma direta ou indireta, no plano de vida da pessoa ou do grupo em relação às suas atividades essenciais, inviabilizando-as ou tornando-as insuficientes” (GUSTIN, 1999, p. 27).

 

Ousa-se afirmar, então, que os magistrados hoje possuem a importante tarefa de corrigir normas deficientes por meio da jurisprudência, para ajustar os interesses em conflito, mormente aqueles de ordem pública e objeto de litígio entre cidadão ou sociedade civil e Estado (SPRINGER, 1992, p. 33). No entanto, é preciso que de alguma forma se crie um parâmetro pelo qual as decisões judiciais obedeçam a um padrão interpretativo, sem excessiva rigidez por certo, mas suficiente para impedir que os excessos do pluralismo traga tantos prejuízos quanto aqueles provocados pelo monismo jurídico. Entretanto, na década de cinquenta, um notável filósofo do direito, Luiz Recaséns Siches, observa que se pelos motivos considerados os pluralistas resolvem satisfatoriamente a questão relativa a “fazer justiça", esses mesmos motivos não são suficientes (embora sejam necessários) para solucionar a questão hermenêutica da interpretação do direito. (SPRINGER, 1992, p. 33)

 

Se é imprescindível atribuir à norma jurídica atual substancialidade, também não se deve desprezar os ganhos obtidos pelas sociedades contemporâneas, socialmente inclusive, com a sistematização do direito (DAVID, 2002, p. 65-66). Conquanto críticas possam ser realmente feitas ao modelo codificador, o próprio desenvolvimento da sociedade civil e do Estado Democrático somente foram viabilizados após a organização das leis e do modo de sua aplicação, pautados pelos princípios atualmente previstos no Art. 5º da Carta Constitucional brasileira de 1988, como dito anteriormente. Assim, o ativismo judicial deve ser responsável. Ele é parte da hermenêutica de nosso tempo, colabora para a concreção da norma jurídica e pleno alcance de sua normatividade, além de inserir indivíduos excluídos que gravitam ao redor de instituições que sejam capazes de produzir soluções (FEREJOHN, 2003, [documento eletrônico]), na categoria de cidadãos. Todavia, deve fazê-lo sem abusos, agindo sem invasão de outras esferas de Poder, que precisam mudar sem dúvida, mas pela via política, pela participação popular ativa no processo legislativo e junto aos órgãos de poder. Cabe ao Judiciário proteger a participação do cidadão e a atuação legítima do Estado, permitindo que o diálogo se estabeleça em termos equitativos entre esses sujeitos, mas não lhe cumpre agir em seu lugar, o que não é seu papel.

 

 

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